por Guilherme Poggio (*)

Nos últimos meses o programa F-X2, que elegeu o caça Saab Gripen E para renovar a aviação de caça do país, tem sido atacado por todos os lados.

Os rumores começaram a se materializar há um ano. No final do mês de outubro de 2023, durante uma apresentação sobre planos estratégicos da FAB, apareceu um slide com o título “Projetos Futuros”. No mesmo slide, logo abaixo do título principal, apareceram as palavras “Novos Caças” entre duas fotos, uma de um Gripen E e outra um F-16. A imagem da slide foi capturada pelo nosso colega Fernando Valduga do site Cavok e está reproduzida abaixo.

Até aquele momento nada havia sido dito oficialmente sobre aquisição de qualquer outro caça para a FAB que não fosse o Gripen. Na época da divulgação do slide, o Poder Aéreo entrou em contato com a Assessoria de Imprensa do Comando da Aeronáutica, mas não obteve resposta. 

Poucos meses depois, em fevereiro deste ano, o comandante da Aeronáutica deu uma entrevista ao jornal O Globo e afirmou que a FAB poderia comprar um segundo lote de caças Gripen e também uma outra aeronave, sem especificar exatamente qual seria. O portal Janes informou em junho que a FAB pretendia decidir rapidamente sobre a compra de F-16 usados, preferencialmente até o final deste ano de 2024. Nesta segunda tentativa de obter informações sobre o caso, o Poder Aéreo recebeu resposta do CECOMSAER reafirmando o que o comandante havia dito na entrevista de fevereiro.  

Com a porteira oficialmente aberta, o tema virou o “Samba do Caça Doido” neste segundo semestre de 2024. Ouviu-se (ou leu-se) de tudo. Desde a aquisição de caças leves HAL Tejas em troca da venda de KC-390 para a Índia até a aquisição de jatos de treinamento M346 italianos para complementar os caças Gripen E.

Paralelamente a todas essas notícias, andam surgindo na mídia digital textos atacando duramente o Programa F-X2 / Gripen. Estes textos se utilizam de meias verdades, insinuações e até mesmo desinformação e omissões.

Independentemente do rumo a ser seguido, ao que tudo indica o atual Comando da Aeronáutica parece se distanciar daquela rota previamente estabelecida uma década atrás onde o planejamento da FAB previa a aquisição de 108 caças Gripen em três lotes distintos para substituir não só os 12 aviões F-2000 de Anápolis e uma parte da frota de F-5M com os 36 caças Gripen E/F iniciais, mas também os restantes F-5M e os A-1M. 

Por que a FAB quer outro caça?

A resposta para esta pergunta não está clara. A FAB não estaria satisfeita com o caça? Isso não parece ser verdade,  devido a declarações de pilotos tanto sobre o desempenho do Gripen como também a respeito das tecnologias que ele oferece e avanços que ele traz em comparação às atuais aeronaves de primeira linha da força. 

Quanto à disponibilidade, basta ver o número de aeronaves que a FAB enviou para Natal para a participação no Exercício Cruzex deste ano. Dos nove caças Gripen recebidos até agora pelo Brasil, sete estão em Natal, um permanece em Gavião Peixoto sendo ensaiado pela FAB/Embraer e apenas um ficou na Base Aérea de Anápolis.

Poderíamos imaginar que a FAB queira outro caça porque o cronograma de entregas está atrasado. Sendo assim, a FAB precisaria de outra aeronave no curto prazo para que a sua frota de caças não seja drasticamente reduzida.

O cronograma está atrasado por um motivo principal: orçamento.

Por limitações das leis orçamentárias anuais, onde a utilização de empréstimos entra como despesas e ampliação da dívida externa, o Brasil vem desembolsando anualmente entre metade e 2/3 do que deveria do empréstimo contraído em banco sueco, o qual banca a execução física do contrato desde 2015.

Em média, o orçamento da União vem permitindo que a FAB utilize, anualmente, cerca de 1,5 bilhão de reais (convertidos em coroas suecas em sua maior parte) do empréstimo, quando a média dos últimos 9 anos deveria ter sido próxima a 2,5 bilhões.  Nos anos finais do cronograma, já esticado várias vezes devido a essas restrições, o volume utilizado deveria ser ainda maior, próximo a 3 bilhões.

Assim, as entregas que deveriam ser finalizadas neste ano de 2024 foram postergadas para 2027 e provavelmente serão ainda mais, pelo atual ritmo de desembolso do empréstimo feito no banco sueco. Em resumo: a FAB não consegue fazer os pagamentos necessários para que o cronograma físico/financeiro estabelecido no começo do programa fosse atendido.

Se o Brasil recebeu apenas 9 unidades até hoje (número insuficiente para formar um único esquadrão), ele é o culpado disso. Não custa repetir: pela programação inicial a FAB deveria ter todos os seus 36 Gripens encomendados até o final deste ano! (ver imagem acima) Mas pela ausência de pagamentos só recebemos 9 (menos de um terço do contrato inicial). Para a questão dos pagamentos (ou melhor, a falta deles), é recomendável a leitura do excelente artigo escrito pelo editor do Poder Aéreo, Fernando De Martini, sobre o tema, assim como artigo anterior sobre outros detalhes dos contratos assinados.

Houve outros motivos para os atrasos no cronograma de entregas, como as dificuldades naturais de programas de desenvolvimento (praticamente nenhum caça moderno foi desenvolvido nos prazos originariamente planejados), além de problemas nas cadeias globais de suprimentos, afetadas pela Pandemia do Covid 19, fato admitido em relatórios de gestão da FAB) e pela Guerra na Ucrânia. Mas o principal problema informado oficialmente pela FAB ao longo dos últimos 9 anos, em seus relatórios de gestão que trouxeram resumos das renegociações de contratos e cronogramas, foi este: restrições orçamentárias.

Caso a FAB venha a adquirir outro caça, o problema da verba será o mesmo. Se não tem recursos para honrar um compromisso já assumido, por que teria para um compromisso ainda não assumido? De um momento para outro, as restrições orçamentárias que impõem limites à utilização de um empréstimo assinado em 2025 desaparecerão para outro empréstimo ainda a ser assinado? Ou alguma solução financeira extremamente criativa estaria sendo elaborada?

Na verdade, o problema aqui é mais delicado. O Brasil fechou um acordo com bancos suecos para a aquisição do Gripen numa época em que o mundo possuía juros muito baixos ou negativos. As condições de pagamento na época eram excelentes e as taxas cobradas eram relativamente baixas para um empréstimo com 10 anos de carência para início dos chamados “repagamentos” (quando o Tesouro passa a pagar o principal do empréstimo, a partir de 2025, e não apenas os juros e garantias, como tem sido nos últimos 9 anos).

Passada uma década, vivemos outra realidade. Os juros no mundo encontram-se em patamares bem mais elevados e qualquer novo empréstimo não será tão favorável para o país.

Um LIFT substituiria os A-1?

É público e notório que os jatos de ataque A-1M da FAB darão baixa até o final do ano que vem. Embora modernizados recentemente, o motor se tornou o calcanhar de Aquiles da aeronave. Os contratos para a manutenção do mesmo não irão além de 2025. Há textos aqui no Poder Aéreo que explicam em detalhe tudo isso, e apenas um punhado (5) têm suporte logístico garantido até o final da operação.

Com a aposentadoria prematura dos A-1M cria-se um vácuo (ou “gap”, como alguns preferem) na aviação de ataque e reconhecimento da FAB. Este vácuo não deveria existir se, como dito acima, o cronograma físico financeiro inicial fosse cumprido, mas vai existir de qualquer forma, pois soluções paliativas ou definitivas não são entregues da noite para o dia.

De qualquer forma, desde o início do Programa F-X2 a ideia sempre foi a aquisição de um único vetor de alta performance multifuncional capaz de atuar em diversas missões de combate, incluindo ataque e reconhecimento. Ou seja, com a escolha do Gripen E lá atrás, em 2014, já se sabia que o mesmo teria que cumprir essas missões e, por tabela, substituir o A-1/ A-1M

O Gripen E poderá não só fazer o que o A-1 faz hoje como ir além. Ele não necessitará de escoltas (poderia fazer sua própria defesa contra aeronaves adversárias), embarca um conjunto eletrônico (tanto passivo como ativo) muito mais moderno e carrega mais armamento que o A-1.  O mesmo vale para as missões de reconhecimento (se bem que o campo de batalha atual migra para aeronaves não tripuladas nesta área).

Diversas outras aeronaves poderiam substituir o A-1. Qualquer um dos concorrentes do Programa F-X2, por exemplo, poderia fazer isso. Até mesmo os tão falados F-16 de segunda-mão.

A pergunta que se faz é: por que adquirir um outro substituto para o A-1 que não seja o Gripen? Qualquer aeronave que não seja o Gripen demandará em torno de três a seis anos para entrar em atividade na FAB (sobre este tema leia o artigo “F-16 como ‘tampão’? As lições que o Mirage 2000 deixou para a FAB”), dependendo do modelo e do estado em que ela se encontra. Dentro deste período a FAB já terá recebido todos os seus Gripen E encomendados, a não ser que o cronograma se estenda ainda mais. Basta ter os recursos necessários para pagar o contrato já assumido (que está atrasado) – e se recursos para soluções paliativas aparecerem, por que não usá-los para garantir a utilização plena do empréstimo já realizado, para uma aeronave que já tem linha de montagem final estabelecida aqui no Brasil, além de fábrica de componentes estruturais?

Um LIFT (Lead In Fighter Training – Treinador de Introdução a Caças Avançados) jamais teria a capacidade de substituir o A-1 ou um caça de ataque moderno no mesmo nível. Um LIFT leva menos carga bélica, possui alcance limitado e eletrônicos muito mais simplificados. Com baixa capacidade de sobrevivência num ambiente tão hostil, ele poderia ser empregado em ações localizadas e conflitos de baixa intensidade. Caso venha a receber sistemas eletrônicos mais sofisticados para aumentar sua sobrevivência, seu custo de aquisição e de apoio logístico aumenta significativamente, começando a se aproximar do valor de um caça como o Gripen.

Para missões em ambientes menos hostis, onde um LIFT com sistemas eletrônicos mais simples poderia operar com segurança, a FAB e a indústria aeronáutica brasileira já possuem a resposta e ela se chama Super Tucano. Aliás, o programa de modernização dos A-29 da FAB já foi aprovado nas mais altas esferas do Comando da Aeronáutica.

A (i)lógica da aquisição de um LIFT ou de caças usados para substituir os jatos A-1M e F-5M remanescentes já foi analisada de forma crítica aqui no Poder Aéreo: um país com linhas de montagem de Gripen e Super Tucano não deveria recorrer a caças usados. Nem a jatos de treinamento fazendo o papel de caças de primeira linha.

Precisamos de LIFT?

Uma aeronave LIFT, como é o caso do M346, se torna indispensável para Forças Aéreas que optaram por caças que não possuem uma versão de conversão operacional do mesmo. O exemplo mais atual é o F-35 Lightning II. Trata-se de um dos caças mais avançados da atualidade, cujas três versões existentes são todas monopostas.

Tirar um candidato a piloto de caça do T-6 Texan II e colocá-lo direto no cockpit do F-35 parece algo impensável para a USAF. Por este motivo a USAF emprega o jato de treinamento T-38 Talon, onde o candidato a F-35 continua a desenvolver suas habilidades numa aeronave com performance mais próxima dos caças de primeira linha como o F-35. Num futuro próximo o T-38 será substituído pelo Boeing/Saab T-7 Red Hawk, mas o conceito do LIFT se manterá.

Raciocínio semelhante pode ser feito com outras forças aéreas que também empregam ou empregarão o F-35, como Itália, Grécia, Polônia, Singapura e Israel. Essas quatro forças aéreas utilizam o M346 como aeronave LIFT e são responsáveis por cerca de 80% das compras do jato até aqui. Em outras palavras, o M346 se tornou uma opção de aeronave LIFT para usuários (ou possíveis usuários) de caças F-35.

Até onde se sabe a FAB não pretende adquirir o F-35. Na verdade, o futuro da aviação de caça da FAB já foi traçado por ela mesma e ele se chama F-39 Gripen. Embora o Gripen E seja um caça monomotor, a FAB fez questão de incluir no programa o desenvolvimento do modelo biposto (Gripen F) do caça tendo como objetivo criar uma aeronave de conversão operacional, capaz também de desempenhar todas as missões do monoposto.

No futuro os candidatos a piloto de caça que deixarem as unidades dotadas de A-29 Super Tucano serão avaliados no Gripen F biposto antes de seguirem para as unidades de caça de primeira linha, num sistema de treinamento que utiliza largamente os simuladores em terra (e inclui parte das missões de conversão também no monoposto – em geral, apenas o primeiro voo de cada nova missão aprendida é realizada no biposto, na sistemática da própria FAB com o F-5EM/FM).

Aliás, a Força Aérea Francesa faz algo parecido. Os alunos do curso de caça  deixam o turboélice Pilatus PC-21 e seguem direto para o Rafale biposto.

Graças à tecnologia embarcada o Gripen é uma aeronave de fácil pilotagem. O sistema de controle de voo fly-by-wire digital do caça faz boa parte do trabalho que anteriormente era todo do piloto. Ou seja, espera-se que os candidatos tenham uma adaptação mais rápida e simples às características de voo do Gripen do que tinham em relação ao F-5.

Ainda em relação ao modelo F, cabe destacar os enormes recursos que já foram despendidos para o seu desenvolvimento, inclusive com a participação de empresas nacionais e engenheiros brasileiros, num programa em que centenas de pessoas foram treinadas na Suécia. O desenvolvimento do Gripen F foi uma demanda exclusiva do Brasil que praticamente eliminou a necessidade de um LIFT. 

Resumo da ópera

Goste-se ou não, o Gripen foi escolhido há dez anos como o vetor de alta performance da FAB para as próximas décadas. Tudo que a FAB exigiu para o programa está contido nos acordos. Código-fonte aberto, Transferência de Tecnologia, linha de montagem em solo brasileiro,  customização, participação no desenvolvimento de versão biposta e muito mais. Ainda que o programa do Gripen E/F tenha passado pelos percalços que praticamente todos os desenvolvimentos de caças passam, as exigências estão sendo cumpridas, conforme os próprios relatórios da FAB informam, ano após ano (sem falar nas notícias oficiais divulgadas pela Aeronáutica.

Se a FAB optar por outra aeronave de combate ela fará as mesmas exigências? Ou tudo que ela solicitou até aqui para o Gripen, e que exigiu também dos outros concorrentes do F-X2, especialmente dos finalistas Super Hornet e Rafale, não tem mais importância?

Os acordos foram assinados e ambas as partes precisam cumprir com as suas obrigações. A Suécia e a Saab estão fazendo a parte deles, conforme a própria FAB atesta em seus relatórios. Caça de graça ninguém vai fornecer. Portanto, cabe ao Brasil desembolsar os recursos necessários para que o programa seja efetivamente cumprido.

É como diz o velho ditado, “em casa onde falta pão, todos brigam e ninguém tem razão”. Neste caso, o que falta ao Brasil é espaço orçamentário para cumprir os compromissos já assumidos, e que são pagos pela utilização de um empréstimo contratado em 2015, com quase dez anos de carência até o início dos repagamentos.

O Brasil pode optar pelo Gripen, pelo F-16, pelo Tejas, pelo M-346 ou aguardar mais um pouco pelo surgimento do X-Wing, numa galáxia muito, muito distante. Tanto faz. O problema é e será sempre o mesmo: a falta de recursos para cumprir o objetivo inicialmente traçado. De outra forma, continuaremos nesse Samba de Caça Doido. 

(*) Guilherme Poggio é editor do blog do Poder Aéreo

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