Que resultados esperar da Transferência de Tecnologia, a famosa ‘ToT’, que faz parte do programa do Gripen para o país? A capacidade de projetar um caça de nova geração é uma das possibilidades. O assunto esteve na pauta da visita de jornalistas à linha de montagem do caça em Gavião Peixoto, assim como as perspectivas de vendas do Gripen para outros países da região.

Por Fernando “Nunão” De Martini*

A linha de montagem brasileira do caça Saab Gripen E completou um ano desde sua inaguração, em maio de 2023.  Em nossa visita às instalações de Gavião Peixoto para conferir a evolução da linha no período (clique aqui para acessar matéria publicada na última sexta-feira), assistimos inicialmente a duas apresentações de executivos da Saab sobre o estágio atual do programa, seguidas de uma seção de perguntas e respostas. Algumas das informações já foram mencionadas em matérias anteriores, mas agora vamos detalhar um pouco mais o que foi falado e respondido sobre o chamado “ecossistema” do Gripen no Brasil e o programa de transferência de tecnologia (também conhecido como ToT, da sigla em inglês Transfer of Technology).

Luiz Hernandez, diretor de cooperação industrial da Saab no Brasil, falou principalmente sobre os programas de transferência de tecnologia. Ainda em andamento, o processo envolveu o envio de cerca de 350 brasileiros na Suécia, fase praticamente finalizada, totalizando mais de 600 mil horas, como já informamos em matéria anterior. O executivo afirmou que esta foi a maior transferência de tecnologia já realizada pela Saab, com mais de 60 projetos de desenvolvimento, e alguns deles chamaram particularmente a atenção durante a apresentação do diretor. Caso dos que são vistos na projeção abaixo, cuja tela reproduzimos mais à frente.

Luiz Hernandez, diretor de coperação industrial da Saab no Brasil, em apresentação realizada em 5 de junho de 2024

O processo de transferência do conhecimento se dá de forma bastante ativa, pois ultrapassa o treinamento teórico, focando em boa parte na fase “on the job” (com a mão na massa) do aprendizado dos técnicos e engenheiros. Pode-se interpretar que é um tripé que envolve desenvolvimento no país, produção e manutenção.

As fases de testes de voo estão incluídas nesse programa de transferência e o processo alcança o estágio de também “treinar os futuros treinadores”, de modo a garantir a transmissão do conhecimento e a capacidade de gerar novos desenvolvimentos.

A transferência de tecnologia no programa Gripen visa principalmente as indústrias, segundo Luiz Hernandez. Isso se dá, conforme o diretor de cooperação industrial, porque é nelas que se concentram duas capacidades fundamentais. Uma é a de manter o Gripen, garantindo o suporte do caça para a FAB (Força Aérea Brasileira, que encomendou 36 exemplares da aeronave). A outra é de gerar os chamados spin-offs, que são novas aplicações da tecnologia em novos projetos e programas (nas mais diversas áreas). Futuramente essas empresas, com o emprego das capacitações do programa de cooperação industrial, poderão tanto adicionar novas capacidades ao caça como participar de projetos mais avançados.

Caça de nova geração: pesquisas em redução de assinatura e desenhos de entradas de ar

A apresentação menciona, como vimos, mais de 60 projetos relacionados à transferência de tecnologia do programa, e alguns foram destacados: integração de sistemas, projeto aerodinâmico e estrutural, simuladores, organização da manutenção (pensando no ciclo de vida completo da aeronave, o que inclui a indústria brasileira),  integração de armamentos e um que chamou bastante a atenção dos presentes por apontar para além do Gripen: o futuro caça (último item da tela abaixo).

Luiz afirmou que, dentro da transferência, há os projetos que abordam tecnologias mais avançadas, as quais são importantes para o desenvolvimento de aeronaves, por sua vez, também mais avançadas. Nesse caso, a transferência e o desenvolvimento conjunto vai além das indústrias, envolvendo também organizações da Força Aérea Brasileira como o DCTA (Departamento de Ciência e Tecnologia Aeroespacial) e o ITA (Instituto Tecnológico da Aeronáutica).

Isso ocorre porque a própria FAB colocou a capacidade de desenvolver caças de nova geração entre suas metas, no programa de transferência de tecnologia, desde a época da disputa dos concorrentes do programa F-X2, o que foi explicitado nas audiências com o Congresso a respeito da escolha do caça Gripen (clique no link para acessar matéria da época). Veja abaixo duas das telas de apresentação feita pela FAB na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional, em fevereiro de 2014, mencionando capacitação para aeronave de 5ª geração e as contrapartidas buscadas:

Segundo Hernandez, há tecnologias que são fundamentais para iniciar o projeto de um caça de nova geração, a partir das tecnologias do Gripen, e isso ocorre dentro dos chamados Programas R&T (Research and Technology – pesquisa e tecnologia). Ele mencionou que os principais itens buscados são a redução de assinatura (RCS – Radar Cross Section / seção reta radar), desenhos das entradas de ar para os motores, entre outros. Questionado mais à frente, na parte dedicada a perguntas e respostas, o executivo respondeu que seis dos projetos envolvem tecnologias ligadas ao caça do futuro, citando especificamente estes dois. Vale lembrar que o formato das entradas de ar, assim como a capacidade de “esconder” as pás dos compressores do motor, estão entre os itens que contribuem para reduzir a assinatura de um caça.

O diretor de cooperação industrial deixou claro, porém, que não há um projeto específico de caça do futuro em andamento. O que existe hoje é uma preparação para quando for decidido iniciar o projeto. Em outras palavras, trata-se de uma base para que isso possa ser feito.

A capacitação atual da Embraer e de outras empresas (Luiz mencionou, por exemplo, a Akaer, que teve grande participação no início do programa, hoje menor por este se encontrar na fase de produção e não mais de projeto) está no momento focada em outra prioridade: suprir as necessidades da FAB e do Gripen. Isso inclui a própria evolução do caça e as demais integrações a serem feitas durante o ciclo de vida.

Luiz lembrou, porém, que fora do contrato atual há um memorando de entendimento assinado entre Saab e Embraer para desenvolvimento de novas tecnologias. No anúncio desse memorando, em abril do ano passado, entre os itens destacados estavam “estudos técnicos para futuros caças, fortalecendo a transferência de tecnologia realizada pela Saab para a Base Industrial de Defesa do Brasil, no âmbito do programa Gripen para a Força Aérea Brasileira (FAB).”

Hans Sjöblom, gerente geral da Saab em Gavião Peixoto, apresenta o ‘ecossistema’ do Gripen na Embraer

 

Pacotes de trabalho de desenvolvimento

Como já mencionamos em matéria anterior, outro executivo a fazer apresentação que antecedeu a visita à linha de montagem foi Hans Sjöblom, gerente geral da Saab em Gavião Peixoto. Ele apresentou o chamado “ecossistema” do Gripen na Embraer, que vai além da linha de produção, incluindo o GDDN (Gripen Design and Development Network – Centro de Projetos e Desenvolvimento do Gripen) e o GFTC (Gripen Flight Test Centre – Centro de Ensaios em Voo do Gripen).

Em próximas matérias vamos detalhar as visitas que fizemos a esses dois centros, onde mais questões foram respondidas. Nesta, o foco é falar sobre as relações destes centros com o programa de transferência de tecnologia, onde se sobressai o papel do GDDN, considerado o “hub” que permitiu desenvolver simultaneamente Gripen E e Gripen F com a Suécia. Desde 2016, quando foi inaugurado o GDDN, o sistema de trabalho segue essa ordem, sempre com conexão direta e segura com Linköping, segundo Hans: o trabalho é feito aqui, validado na Suécia, volta, e então é revalidado aqui.

Tudo isso é feito em “pacotes de trabalho de desenvolvimento”. Sjöblom apresentou 18 exemplos desses pacotes (veja tela acima), que em nossa interpretação dialogam com os 60 projetos relacionados à transferência de tecnologia do programa, apresentados pouco antes por Luiz Henriquez.

Entre esses pacotes, desenvolvidos por engenheiros da Embraer, estão aviônica, integração de armas, sistema de suporte de missão, controles ambientais e seção reta radar, já mencionada acima – desenvolvimento que desde o início fez parte dos planos da FAB, como vimos.

Sobre o GFTC, que funciona desde 2020, Hans focou sua apresentação no exemplo mais recente de testesem Belém, relacionados a ambientes de alto calor e umidade. Entre os pacotes de trabalho relacionados, estavam os testes climáticos (WWC – World Wide Climate) e o do sistema de desembaçamento (Defog system), acionado quando o caça passa por rápidas mudanças de altitude, passando por ambiente externo muito frio para muito quente, o que pode afetar não apenas seus sistemas quanto a própria visibilidade a partir da cabine. Segundo o executivo, os testes foram bem-sucedidos.

Falaremos mais sobre o GFTC em próxima matéria, mas vale destacar um dos sistemas que fazem parte dos pacotes de trabalho do centro: o de guerra eletrônica. Tivemos oportunidade de conversar um pouco sobre o tema durante a agenda de visita da imprensa, então aguarde as próximas partes desta série, nos próximos dias.

Expansão da linha brasileira, visando Colômbia e outros países

Segundo Hans Sjöblom, a linha de produção em Gavião Peixoto tem capacidade de se expandir para atender a mais encomendas do Brasil e da América Latina. Como já mencionado em matéria anterior, essa expansão não envolveria necessariamente a instalação de mais plataformas de trabalho, gabaritos e ferramental, e sim a ampliação de turnos de trabalho.

Perguntado se a linha poderia atender a ajudar a Saab a atender encomendas de outras partes do mundo, como da Europa, Hans afirmou que não vê possibilidade de aeronaves destinadas a clientes europeus serem produzidas no Brasil. Porém, ele vê muita chance disso ser realizado para a América Latina. Segundo o executivo sueco, assim como Walter Pinto Junior, vice-presidente de programas de Defesa da Embraer que se juntou à fase de perguntas e respostas no auditório, a Embraer apoia a Saab nas negociações com a Colômbia. Nesse caso, a capacidade produtiva pode aumentar, se necessário.

Mais de um jornalista buscou detalhes adicionais a respeito, sobre haver alguma restrição para que o Brasil atendesse a outros mercados fora da América Latina. Hans e Walter, dentro do que estão autorizados a dizer em concorrências internacionais, disseram que se trata de um acordo da Embraer com a Saab para delimitar os mercados de cada empresa para novos clientes do Gripen.

Perguntamos também sobre o andamento da competição pelo novo caça da Colômbia. Foi respondido que a campanha do Gripen na região vai além da disputa colombiana, na qual as empresas participam. Outros países latino-americanos estão entre os interessados na aeronave.

Uma das últimas questões, feitas ainda no auditório, teve provável conexão com temas que surgem nas guerras de informações em qualquer disputa bilionária de caças supersônicos. Frequentemente se diz que o Gripen, uma aeronave desenvolvida por um país nórdico, teria dificuldades de se adaptar a climas quentes, assunto que literalmente esquentou nas discussões (principalmente em redes sociais) sobre a competição colombiana.

Perguntado se o Gripen precisaria de modificações para atender a requisitos de países de clima tropical, Hans respondeu que qualquer caça pode precisar de mudanças para se adaptar a esta ou aquela exigência de clientes, e que isso depende de cada edital. Porém, especificamente sobre a capacidade de operar em países de clima tropical e equatorial, ele afirmou que as especificações do Brasil já exigiam isso. Assim, o caça foi desenvolvido para atender a essas exigências, o que foi comprovado nos recentes testes em Belém (Pará).

Por que o Gripen F não está na linha de produção brasileira?

Diversas outras questões foram respondidas pelos executivos durante as visitas à linha de montagem, ao GDDN e GFTC, assim como por gerentes e funcionários da Embraer e Saab que acompanharam os jornalistas. Várias delas já foram mencionadas na matéria sobre a linha, e outras serão apresentadas nas matérias sobre o GDDN e GFTC. Uma das questões levantadas tanto por mim quanto por outros representantes da imprensa, na visita à linha de montagem, eu optei por mencionar aqui e não na matéria já publicada da visita à linha, por estar mais relacionada ao tema da transferência de tecnologia. No caso, o desenvolvimento do Gripen F, versão de dois lugares do Gripen E.

Enquanto andávamos para cima e para baixo das estações de trabalho / plataformas de montagem do Gripen, Hans foi perguntado sobre os motivos da decisão de não montar o  Gripen F na linha brasileira. Afinal, foram as oportunidades de desenvolvimento dessa versão que envolveram boa parte do trabalho conjunto e treinamento de engenheiros brasileiros, colocando a “mão na massa” na fase de projeto, mas esse “on the job training” não prosseguiria na linha de produção em si.

O tema tem sido objeto de muitos debates na Internet desde pouco mais de 2 anos, quando foi informado pelo então comandante da FAB, brigadeiro Baptista Jr,  que o Gripen F seria produzido apenas na linha sueca, e não mais na brasileira (na ocasião, ele também falou do planejamento de aquisição de um novo lote, para alcançar um total de 66 caças).

O gerente geral da Saab em Gavião Peixoto respondeu que as razões para produzir o Gripen F na linha sueca foram principalmente econômicas, pela necessidade de otimizar custos do programa brasileiro, mas também de gerar ganhos de escala com a experiência crescente da mão de obra na linha de Gavião Peixoto, com o Gripen E (monoposto).

Por um lado, já foi agregado muito conhecimento aos engenheiros e técnicos brasileiros com a transferência de tecnologia no desenvolvimento conjunto do biposto, porém a montagem final do Gripen F, em si, agrega menos do que já está sendo absorvido, na área de produção especificamente, com a montagem do Gripen E.

Nesta foto e na de cima, pessoal da Saab, da Embraer e jornalistas numa das estações de trabalho da linha de montagem do Gripen em Gavião Peixoto

A produção do biposto, segundo Hans, acaba gerando complexidade extra na montagem final. Afinal, são mais cabos e tubulações para instalar, por exemplo, devido ao segundo assento e à realocação de componentes eletrônicos e de seus sistemas de arrefecimento. Com isso, aumentam os custos e o tempo de montagem.

IMAGENS: Saab (exceto as fotos do palco das apresentações, feitas pelo autor)

*O editor viajou a Gavião Peixoto a convite da Saab.

 

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