O Dassault Mirage III/5 do Século XXI: O ‘Projeto Rose’ da Força Aérea do Paquistão
Por Luiz Reis
O Dassault Aviation Mirage III e o Dassault Aviation Mirage 5 são aeronaves de caça, interceptação e ataque de alta performance (capazes de atingir velocidades acima de Mach 2 – duas vezes a velocidade do som) surgidas em meados dos anos 1950 e 1960, respectivamente, que fizeram grande sucesso entre o meio militar e até mesmo entre o público geral (devido principalmente a curiosa asa em delta de ambos). Tais modelos foram responsáveis por diversas vitórias aéreas e missões de ataque ao solo, consequentemente obtendo grande sucesso comercial, com a venda de diversas unidades a vários países do mundo de ambos os modelos.
Hoje a maior parte dos países que operaram tais aeronaves já as desativaram, muitas delas fazendo isso no final do século XX ou na primeira década do século XXI, incluindo, dentre várias outras, a Força Aérea Brasileira (FAB), que operou o Mirage IIIEBR/DBR; a Força Aérea Argentina (FAA), que operou o Mirage IIIEA/DA, Mirage 5 Mara e o IAI Nesher/Dagger/Finger (uma versão israelense do Mirage 5); a Força Aérea do Chile (FACh), que operou o Mirage 50 (uma atualização do Mirage 5), o Mirage 5 Elkan (uma atualização do Mirage 5 anteriormente operada na Força Aérea Belga) e o ENAER Pantera (uma atualização local do Mirage 50).
Entretanto, uma força aérea ainda utiliza ambas as veteranas aeronaves, de forma plenamente operacional (sendo bastante utilizadas no recente conflito de fevereiro de 2019 contra a Índia) e ainda sem perspectiva de substituição a curto e a médio prazo, devido principalmente a um engenhoso e inteligente programa de modernização de seus sistemas eletrônicos e prolongamento da vida útil das células dessas aeronaves. Essa força é a Força Aérea Paquistanesa (PAF – Pakistan Air Force) e o seu programa de modernização e atualização das células de Mirage III e 5 é chamado de “Projeto ROSE”.
O PROJETO ROSE
O Projeto ROSE (“Retrofit Of Strike Element”, ou “Modernização do Elemento de Ataque”, em tradução livre) foi anunciado em 1992, mas suas atividades começaram em 1995 quando a PAF decidiu retirar as aeronaves chinesas Nanchang Q-5/A-5 Fantan (uma versão chinesa da aeronave russa MiG-19) do serviço ativo e substituí-las pelas aeronaves modernizadas. Os principais fornecedores do programa foram logo selecionados: a empresa paquistanesa Margella Electronics, a francesa SAGEM e o consórcio italiano SELEX, que forneceram os kits para a atualização de tais aeronaves.
A Força Aérea do Paquistão começou então a adquirir dezenas de células desativadas de caças Mirage III e 5 da Austrália, Líbano, Líbia e Espanha, entre 1996 e 2003, a preço de ocasião, além de enviar as suas próprias aeronaves do inventário da PAF para o projeto. Mais de 90% das aeronaves foram atualizadas no próprio Paquistão; os 10% restantes foram atualizados na França, sob a orientação de técnicos franceses, que supervisionaram o projeto e instruíram os paquistaneses na atualização.
O Paquistão planejou atualizar mais aeronaves e fazer até uma modernização mais abrangente, devido a outras propostas de atualizações terem sido recomendadas (como por exemplo a proposta do Mirage 3NG), mas o programa foi encerrado devido aos crescentes custos das peças sobressalentes e às péssimas condições das células desativadas dos Mirage III e Mirage 5, no momento de sua aquisição, de vários países.
Espera-se atualmente que todos os jatos de combate Mirage atualizados pelo Projeto ROSE permaneçam no serviço de combate com a Força Aérea do Paquistão pela década de 2020 adentro, principalmente em funções de ataque tático. Eles deverão ser substituídos ou pelo caça fabricado localmente CAC/PAC JF-17 Thunder (dos Blocos III e dos futuros Blocos IV ou V) ou por caças Lockheed Martin F-16 novos ou de segunda mão modernizados ou ainda por uma aeronave de quinta geração, mas não há até o momento nenhuma definição oficial sobre isso.
HISTÓRIA E VISÃO GERAL DO PROJETO
Na década de 1990, os Estados Unidos impuseram um embargo econômico e militar ao Paquistão devido ao fato de seu programa nuclear ultrassecreto estar ativo desde a década de 1970, sendo uma das principais ações desse embargo a retenção da entrega de novos caças F-16, inclusive já pagos, ao Paquistão. Ao mesmo tempo, a sua principal rival, a Força Aérea Indiana (IAF – Indian Air Force) começou a adquirir novas aeronaves e a modernizar seus atuais aviões de combate; colocando assim grande pressão sobre a PAF. O embargo causou grande pânico nas forças armadas paquistanesas, uma vez que os paquistaneses tinham muitas aeronaves de origem norte-americana e eles teriam que apresentar soluções inovadoras para manter o mínimo de capacidade de combate operacional dessas aeronaves.
Em 1992, a Força Aérea do Paquistão elaborou a estratégia para aumentar sua capacidade de autossuficiência e imediatamente lançou o “Programa ROSE” e o “Programa Saber-II”, esse último resultou no bem-sucedido desenvolvimento do caça JF-17. Apenas em 1995 tais programas tiveram início, quando a então primeira-ministra Benazir Bhutto liberou fundos para o Ministério da Defesa (MoD) paquistanês para ambos os programas. Apesar das objeções dos Estados Unidos, a PAF conseguiu adquirir um grande número de células dos caças Mirage III e 5 de vários países, incluindo Austrália, Bélgica, Líbano, Líbia e Espanha entre 1996 e 2000.
A francesa SAGEM e a italiana SELEX foram contratadas para fornecer consultoria e apoio sobre eletrônica militar e aviônica em 1996. Instalações especiais de revisão e as divisões projetadas foram estabelecidas no Complexo Aeronáutico do Paquistão (PAC) em Kamra. Nesta primeira fase do programa, designada como ROSE-I, cerca de 33 caças Mirage III, designados “ROSE I” (ou “ROSE Mk.1”), foram melhoradas para executar vários tipos de missão, incluindo superioridade aérea e missões de ataque. O ROSE-I também configurou 34 jatos de combate Mirage 5 para realizar operações noturnas, adaptando o painel ao uso de Óculos de Visão Noturna (NVG).
Em 1998, a SAGEM e a italiana SELEX abandonaram o projeto, sendo substituídas pelas empresas paquistanesas Margalla Electronics, DESTO, GIDS e a NIE. Logo após cerca de 20 caças Mirage foram atualizados, sendo designados “ROSE-II” (ou “ROSE Mk.2”); e posteriormente mais 14 aeronaves foram modificadas, sendo designadas ROSE-III (ou “ROSE Mk.3”). Mirages mais recentes adquiridos da Austrália e da Bélgica estavam em condições extremamente boas, com poucas horas de voo e bem armazenados, para complementar a frota original da PAF de 34 Mirage IIIE e 32 Mirage 5P adquiridos novos diretamente da França entre 1967 e 1982. Em 1998, a Força Aérea do Paquistão comprou toda a frota de Mirage V paralisada do Líbano e atualizou-os na PAC também pelo Projeto ROSE.
Uma equipe do Projeto ROSE, formada por pilotos e técnicos da PAF, foi organizada para gerenciar o programa e realizaram diversas reuniões com frequência no Paquistão e na França, onde alguns problemas técnicos foram discutidos. O PAC e seu pessoal técnico também estiveram envolvidos com fabricação de novas peças e do controle de qualidade. Os pilotos de testes do PAF validaram o desempenho do novo equipamento durante os voos de teste. Em 2003, a PAF comprou um total de cerca de cinquenta Mirage III e Mirage 5 da Líbia, recentemente desativados, junto com 150 motores ainda em embalagens seladas e uma enorme quantidade de peças de reposição. A maioria dessas aeronaves seriam desmontadas para garantir um estoque de peças (que já não são fabricadas há anos) exigidas pela frota de Mirage já em serviço na PAF. Com essa compra, o Paquistão seria o maior operador de caças Mirage III e Mirage 5 no mundo (e hoje o único operador do Mirage III).
AERONAVES PRODUZIDAS PELO PROJETO ROSE
1 – DASSAULT/PAC MIRAGE IIIO ROSE-I (ROSE Mk.1)
Em 1991, a Força Aérea do Paquistão comprou 50 Mirage IIIO/D da Austrália, sendo que 45 dos 50 caças foram considerados adequados para operarem na PAF, 12 deles foram logo reformados e se tornaram operacionais. Depois de inspecionados, os 33 restantes foram selecionados para atualização no Projeto ROSE. Essas aeronaves foram modificadas para o padrão ROSE-I. O cockpit foi modernizado com um novo “Head-Up Display” (HUD), controles “Hands On Throttle And Stick” (HOTAS), novos visores multifunção (MFD) e altímetro de radar e um sistema de navegação e ataque da SAGEM. Novos sistemas de navegação, incluindo um sistema de navegação inercial (INS) e sistema GPS, também foram instalados. Os upgrades de sistemas defensivos consistiam em um novo receptor de aviso de radar (RWR), uma suíte de contramedidas eletrônicas (ECM) e um sistema de contramedidas, com dispensadores de flares e chaffs para confundir mísseis inimigos e radares.
O radar multimodo FIAR (agora SELEX Galileo) Grifo M3 foi instalado posteriormente em uma segunda fase do projeto de atualização. Foi anunciado que os caças da ROSE-I poderiam facilmente se manter em serviço até a década de 2010. No início de 1999, afirmava-se que problemas técnicos haviam surgido durante os testes de voo do radar Grifo M3 no Mirage III, mas estes foram resolvidos mais tarde. A integração de um novo e moderno radar de deu aos caças Mirage III ROSE-I a capacidade de disparar mísseis ar-ar guiados por radar avançados além do alcance visual (BVR) como por exemplo o Rafael Derby israelense, usado na FAB. O míssil ar-ar de curto alcance (WVR) padrão do PAF na época, o AIM-9L Sidewinder, foi integrado ao radar Grifo M3.
O Grifo M3 (da mesma família do radar Grifo F-BR utilizado nos Northrop F-5E/FM modernizados da FAB) foi desenvolvido especificamente para atender a PAF e está em plena operação no Mirage III desde 2001. Possui consumo de energia de 200 W, opera na banda-X e é compatível com sistemas de guiagem IR, semiativos e mísseis guiados de radar ativo. A antena circular tem um diâmetro de 47 cm. O radar tem mais de 30 diferentes modos de missão e navegação operacionais ar-ar/ar-superfície. Os modos de ar para ar incluem faixa de alvo único/duplo e rastreamento durante a varredura. Os modos de ar para superfície incluem Mapa de Feixe Real, Afiação de Feixe Doppler, Mar Baixo/Alto, Indicador Alvo de Mover Solo, Pista de Alvo Móvel de Solo/Mar. Outros modos opcionais incluem avaliação de invasão, identificação de alvo não cooperativo, SAR (radar de abertura sintética) e atualização de velocidade de precisão. Frequências de repetição de pulso baixas, médias e altas reduzem os efeitos da interferência do solo. Tecnologia de compressão de pulso adaptável digital, receptor de canal duplo, cobertura de varredura de +/- 60 graus em azimute e elevação, resfriamento a ar, pesa menos de 91 kg, MTBF (voo garantido) durante 220 horas. Disposições abrangentes de ECCM (contramedidas eletrônicas) e equipamento de teste incorporado (BITE). Os interrogadores do IFF também podem ser integrados.
A PAF também modificou o sistema de combustível das aeronaves e instalou sondas de reabastecimento em voo (REVO) de origem sul-africana para a aeronave Mirage III ROSE-I afirmando que foi um programa piloto para a introdução de capacidade de reabastecimento aéreo para os Mirage III e 5 da Força Aérea Paquistanesa. Também há evidências de que o Mirage III ROSE-I é capaz de levar o míssel de cruzeiro (ALCM) nuclear de fabricação local Ra’ad, cujos testes da versão Mark I foram realizados entre 2007 e 2016 e a versão Mark II foi apresentada em 2017, mas seu real status é desconhecido.
2 – DASSAULT/PAC MIRAGE 5F ROSE-II (ROSE Mk.2)
Cerca de 40 Mirage 5F/DF (34 monoplace e 6 biplace) da Força Aérea Francesa (AdlA) foram adquiridas e entregues a PAF em fevereiro de 1999, dos quais cerca de 20 foram atualizadas com uma capacidade melhorada de ataque à superfície. Os caças ROSE-II eram similares ao ROSE-I, exceto pelo fato de que eles estavam equipados com um sofisticado sistema de designação de alvos por infravermelho (FLIR) e mira da SAGEM no lugar do radar Grifo M3. O sistema FLIR foi montado em um pod sob o nariz. Esses caças tornaram-se operacionais em 2000.
3 – DASSAULT/PAC MIRAGE 5F ROSE-III (ROSE Mk.3)
No final da década de 1990, 33 caças Dassault Mirage 5F foram comprados da França, 14 delas foram atualizados para o padrão ROSE-III com FLIR e outros sistemas/modificações por volta de 2004. Uma continuação do ROSE-II, esta atualização oferece uma melhor e mais avançada capacidade de ataque de precisão noturna ao Mirage, com a adição de um novo pacote de aviônicos de navegação/ataque da SAGEM. A aeronave modernizada entrou em operação em 2007 e tornou-se especializada em missões de ataque à superfície noturnas.
CONCLUSÕES E OBSERVAÇÕES
O Projeto ROSE foi bem-sucedido e ajudou a Força Aérea do Paquistão a economizar recursos que poderiam ser gastos em uma nova e moderna aeronave de combate, pois fizeram a modernização de um grande número de aeronaves usando uma fração desses recursos. Durante o planejamento desse programa, foram consideradas novas atualizações e a PAF também recebeu uma proposta para a aquisição de um lote do caça multifunção Dassault Mirage 2000 oriundos da Força Aérea do Qatar, posteriormente recusada em favor de se adquirir mais aeronaves Mirage III e/ou 5 usadas.
Em 2003, a PAF comprou mais treze Mirage III da Espanha para serem fonte de peças sobressalentes, pois, ao contrário das aeronaves australianas e libanesas, elas não poderiam mais voltar ao serviço ativo, pois estavam muito desgastadas. Problemas foram encontrados para a atualização do Mirage 5 na variante de ataque naval para a Aviação Naval Paquistanesa (PNAA – Pakistan Naval Air Arm). No entanto, isso acabou sendo resolvido com a aquisição de mais peças de reposição. Por causa do programa, o PAF ganhou uma grande reputação internacional de especialização na manutenção e atualização do Dassault Mirage.
Apesar dos desafios e problemas, o Projeto ROSE forneceu uma moderna plataforma de combate para a PAF e ajudou a indústria aeronáutica paquistanesa a adquirir experiência e confiança para empreender qualquer projeto similar no futuro, enquanto o Mirage recebeu novas capacidades que melhoraram drasticamente seu desempenho em combate. No terreno internacional, as habilidades engenhosas e criativas do Paquistão fizeram com que o Mirage continuasse a desempenhar um papel importante na defesa do espaço aéreo paquistanês. O projeto deveria continuar por algum tempo depois de 2003, mas a Força Aérea do Paquistão optou por encerrar o programa neste mesmo ano, devido a uma combinação de altos custos operacionais, falta de recursos e envelhecimento das células dos Mirage III e 5.
Tais habilidades em desenvolver e aplicar o Projeto ROSE também ajudaram a indústria aeronáutica paquistanesa a desenvolver seu caça JF-17 Thunder, provavelmente o substituto dos Mirage III/5, e se tornar um dos pilares da Força Aérea Paquistanesa dos dias de hoje.
Atualmente, a Força Aérea Paquistanesa opera cerca de 90 Mirage III e 137 Mirage 5, todos modernizados, com várias células estocadas e uma boa quantidade de peças sobressalentes para suprir suas aeronaves operacionais. A Marinha Paquistanesa opera 12 Mirage 5, também modernizados. A disponibilidade dessas aeronaves é relativamente alta, mesmo com a alta idade das células, prova da boa manutenção das mesmas. Não há uma previsão para a retirada de serviço dessas aeronaves, mas o governo paquistanês estima para depois de 2030.
FONTES: Com informações retiradas da Wikipedia, blog “Defence.pk” do Paquistão e outras.
NOTA DO AUTOR: Artigo publicado originalmente em 2019, foi republicado no Paquistão no renomado blog de Defesa do Paquistão “Defence.pk”).