A superioridade aérea russa na Ucrânia
Por Fábio Sahm Paggiaro – Cel. Av. R1 da FAB
Desde o início da invasão da Ucrânia tem havido questionamentos quanto à capacidade russa de obter a Superioridade Aérea. E muitos desses questionamentos feitos por analistas de inteligência e ex-militares que participaram das guerras no Iraque, Balcãs e Afeganistão.
Entretanto, para entender se Rússia adquiriu ou não Superioridade Aérea, é necessário entender o respectivo conceito.
Segundo a Joint Publication 3-01[1], Superioridade Aérea é o grau de controle do ar por uma força que permite a condução de suas operações, em um determinado momento e local, sem interferência proibitiva do ar e ameaças de mísseis. (grifo e tradução nossos)
Observe-se que o conceito se vincula ao controle do ar visando a evitar interferência proibitiva nas operações. Ou seja, o conceito se refere a um efeito e não a meios, táticas ou doutrina a serem empregados para obtê-lo. Não fala em destruição total ou parcial de infraestrutura aeronáutica, meios aéreos e antiaéreos de oponentes. E, menos ainda, que esta destruição deve ser levada a termo por aeronaves, bombas e mísseis.
Assim sendo, e por dedução do próprio conceito, em função de assimetrias quantitativas e qualitativas entre os meios dos contendores, estes podem ser utilizados de variadas formas para se obter o efeito desejado.
No conflito em questão, essas assimetrias são extremas. A Rússia é a segunda potência militar do mundo. Suas forças armadas são incomparavelmente superiores. Se maciçamente empregadas, aniquilariam as ucranianas em questão de dias ou semanas, independentemente de qualidade de planos e lideranças. As proporções comparativas entre os respectivos meios são de dezenas para centenas ou milhares, sendo que, em termos qualitativos, a vantagem russa também é extrema.[2]
Vale ressaltar que, tanto a força aérea da Rússia quanto seus exército e marinha possuem aeronaves e meios antiaéreos. Seus satélites, radares e aeronaves podem monitorar movimentos e comunicações. Aeronaves e equipamentos de superfície podem interferir eletronicamente em radares de vigilância e antiaéreos, além das comunicações. A maioria dessas missões pode ser feita sem adentrar o território ucraniano.
As forças aéreas russas podem, a partir de seu território, atacar qualquer ponto na Ucrânia, com precisão cirúrgica, em qualquer condição meteorológica, dia e noite. Os radares de seus aviões detectam os inimigos mais longe, seus mísseis são disparados a distâncias bem maiores e suas defesas contra armamentos aéreos e antiaéreos podem neutralizar os ucranianos, por serem estes de fabricação russa, obsoletos e de funcionamento conhecido. Raciocínio análogo aplica-se ao duelo entre meios antiaéreos russos e aeronaves e mísseis ucranianos.[3]
Adicionalmente, qualquer guerra visa à imposição de objetivos políticos, e as estratégias e táticas militares para eles devem convergir[4]. O objetivo político da Rússia é transformar a Ucrânia em Estado tampão e satélite. Quanto menos estrago fizer, menor poderá ser a resistência à invasão e menos intensas as reações internacionais, pelo menos em tese ou pelo desejo de Putin. E, caso esse objetivo seja atingido, a Ucrânia se tornaria aliada e a primeira linha de defesa contra a OTAN. Logo, seria contraproducente destruir sua força aérea, infraestrutura aeronáutica e meios antiaéreos.
Por outro lado, analisando-se os fatos, observa-se que a Rússia não promoveu ataques sistemáticos contra bases aéreas, aeronaves estacionadas, meios antiaéreos e radares. Não há imagens nem reportagens corroborativas e confiáveis que demonstrem isso. Tampouco se noticiou significativos ataques da força aérea ucraniana contra os invasores. E o presidente ucraniano, Zelensky, insiste, diariamente, pela mídia, para que a OTAN estabeleça uma No Fly Zone[5] em espaço aéreo de seu país. Isso é reconhecimento cabal de que a Rússia já tem a Superioridade Aérea.
Dessa forma, seria lógico deduzir que a força aérea ucraniana, reconhecendo a impossibilidade de resistir, optou por dispersar seus meios aéreos e antiaéreos, de forma a preservá-los e evitar destruição inútil, até o estabelecimento de um cessar fogo. Essa dispersão provavelmente tenha ocorrido em pistas e locais improvisados, no oeste do país, mais próximos das fronteiras da OTAN, em área não invadida. Poderiam operar desses locais para fustigar os russos, porém, as surtidas seriam muito limitadas pelo suporte logístico e haveria elevadíssimo risco de serem abatidos, pois seriam detectados logo após decolar.
Também seria lógico deduzir que as forças russas identificaram e monitoram essa estratégia, entendendo, assim, não ser necessário atacar aeródromos, aeronaves e sistemas aéreos e antiaéreos no solo. Pela sua superioridade, se aeronaves ucranianas tentassem operar, seriam detectadas e destruídas. Os poucos sistemas antiaéreos de médio alcance, ao ativarem seus radares, seriam alvos de mísseis antirradiação. Se lançassem seus mísseis, estes seriam neutralizados por defesas eletrônicas das aeronaves alvo. E, caso alguma aeronave conseguisse burlar o controle do ar russo, seria abatida pela antiaérea superior de suas forças de superfície.
Contudo, especialistas e órgãos governamentais do Ocidente afirmam o contrário. A Rússia, mesmo com todo seu poderio, não estaria sabendo empregá-lo, não obteve a Superioridade Aérea e estaria tendo perdas altíssimas. Só que esses números não são compatíveis à comentada assimetria de meios. Tampouco, as mortes e perdas de equipamentos seriam compatíveis à disponibilidade de armamentos e operações de resistência urbana ucranianos. Tais declarações, portanto, poderiam fazem parte da intensa guerra de informação praticada por governos e imprensa ocidentais.
Dessa forma, e considerando o conceito de Superioridade Aérea, a assimetria de poder militar, o objetivo politico russo, bem como os fatos, pode-se afirmar que a Rússia, efetivamente, tem a Superioridade Aérea. O efeito de controlar o ar foi obtido. Contudo, isso não foi conseguido pela forma mais tradicional ou aderente à doutrina clássica que recomenda a destruição de infraestrutura e meios.
A Rússia obteve a Superioridade Aérea pela dissuasão decorrente da assimetria e aprestamento inerentes às características operacionais e à letalidade de seus meios.
[1] Departamento de Defesa. EUA. 2017. Disponível em: https://www.jcs.mil/Portals/36/Documents/Doctrine/pubs/jp3_01.pdf. Acesso em: 20 Mar 2022.
[2] The Military Balance. 2022. Análise do autor considerando as informações constantes da publicação. Para se ter noção da desproporção, são 16 paginas listando equipamentos russos e 05 para os ucranianos.
[3] The Military Balance. 2022. Federations of American Scientists. 2022. Disponível em: https://man.fas.org/dod-101/sys/ac/row/su-30.htm. Análise do autor considerando as informações das publicações anteriores.
[4] Clausewitz, Carl Von. Da Guerra. 1996.
[5] Procedimento utilizado, preventivamente, para garantir que nenhuma aeronave sobrevoe determinado volume de espaço aéreo, sob pena de ser abatida. Para isso, há que se ter uma força aérea bem mais poderosa que aquela a qual se pretende impor a sanção. Se isso está sendo pedido, é porque quem já estabeleceu a No Fly Zone foi a Rússia.