A Fúria dos Centauros – Operação ‘Princesa dos Pampas’
Por Guilherme Poggio
O Brasil, por diversas vezes ao longo do século XIX, tentou delimitar sua fronteira norte com os países vizinhos. Finalmente, em 1906, Brasil e Colômbia assinaram um protocolo estabelecendo parte dos limites entre os dois países. Era o começo do entendimento para a demarcação definitiva. Posteriormente, vieram o “Tratado de Bogotá” de 1907, o Tratado de Limites e Navegação Fluvial de 1928 e a Comissão Mista de Demarcação dos Limites Brasil-Colômbia de 1930.
Dentre os limites entre os dois países, há uma serra que se eleva até 850 metros acima do nível do mar, frente a uma planície cuja altitude média beira os 130 metros. Este acidente geográfico ficou conhecido “Cerro Caparro” ou Serra do Caparro, tendo ramificações tanto para norte como para sul da fronteira.
A região do Cerro Caparro está inserida na província geológica do Rio Negro, uma das sete maiores divisões do Craton Amazonas. Ela aflora na região noroeste do Brasil, no oeste da Colômbia e ao sul da Venezuela. Até o final da década de 1970, a província do Rio Negro era classificada como pobre em recursos minerais metálicos.
Nos anos oitenta a Paranapanema Mineração Indústria e Construção S A passou a se interessar por uma área bem próxima à divisa do Brasil com a Colômbia. Ali existiam ocorrências de ouro em veios de quartzo presentes nos metassedimentos do Grupo Tunuí.
Um acampamento com boa infraestrutura e uma pista de pouso com cerca de 1800m foi montado na região por volta de 1987. O projeto não seguiu em frente e as instalações foram abandonadas. Muitos garimpeiros seguiram para lá e depois disso e o local ficou conhecido como garimpo “Peroa”. Depois de algum tempo, os garimpeiros foram expulsos por membros das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), que passaram a utilizar o local como ponto de apoio no transporte de entorpecentes e armas.
Em 1997 houve a primeira tentativa de destruir a pista. Posteriormente as FARC voltaram a reconstruí-la. Nova tentativa de inutilizar a pista foi feita pela polícia federal em julho de 2002. Um ano depois, índios da região denunciaram que parte da pista estava sendo reconstruída pelas FARC. Era necessário tomar uma atitude mais drástica e de caráter definitivo.
Preparando-se para o ataque
O ano de 1997 foi um período de preparo para o 3º/10º GAv, que estava para iniciar a transição do Xavante para o A-1 . Existia um verdadeiro abismo tecnológico entre a operação das duas aeronaves, sendo necessário um reaprendizado em quase tudo, desde a preparação do voo até a execução das missões. Por outro lado, o 3º/10º GAv era responsável, juntamente pelo 1º/4º GAV, pelo curso de liderança de caça na FAB. Com a transição para o A-1, essa missão passou a ser executada somente pelo Pacau, liberando o Centauro para concentrar-se na nova aeronave e nas missões de ataque.
Em janeiro do ano seguinte o Centauro começou a receber os seus novos aviões. Eram todos A-1 do terceiro e último lote, o mais moderno. Esse lote apresenta alguns melhoramentos em relação aos modelos anteriores, com destaque para um novo modelo de HUD, MFD coloridos, piloto automático e outros.
O esquadrão teve uma evolução rápida e, já em 1998, foi declarado unidade operacional do A-1. A introdução de missões com ReVo (Reabastecimento em Voo) foi outra novidade para o Centauro: em agosto daquele ano, três A-1B, acompanhados de um Xavante com sonda de reabastecimento (a única aeronave desse tipo que recebeu o equipamento), encontraram-se com um KC-130 no céu do Rio Grande do Sul. As missões de longa duração começaram em 2000 quando o 3º/10º GAv já dominava completamente a aeronave. Seis A-1 decolaram de Santa Maria para a Operação Beira-Mar I, em Florianópolis. Foram realizadas diversas missões com diferentes perfis de voo, tanto diurno como noturno.
O começo de 2003 deu mostras que algo grande viria pela frente. Em março daquele ano, os pilotos do Centauro puderam extrair o máximo dos recursos da aeronave, como os modos CCRP/CCIP para lançamento de armamento. Durante a Operação Lobo-Guará, na região de São Borja, os A-1 do 3º/10º GAv empregaram armamento real e obtiveram ótimo proveito.
Em agosto veio o grande teste. Duas aeronaves deveriam partir de Santa Maria e simular um ataque a um alvo em Santarém, no estado do Pará. Posteriormente, deveriam seguir até a fronteira com a Guiana Francesa e pousar em Natal. Toda a missão seria realizada com reabastecimento aéreo. Depois de 10 horas, 05 minutos e 11 segundos, a missão foi completada. O Centauro batia o recorde de nacional de permanência em vôo.
Não havia dúvidas, o 3º/10º GAv estava pronto para ser empregado onde quer que sua presença fosse necessária, em qualquer parte do território nacional. Três meses depois veio a missão real.
Planejando a missão
Voltando ao caso da pista do Caparro, a Polícia Federal passou a estudar alternativas junto às Forças Armadas para destruição definitiva da mesma. Uma das sugestões levantadas foi o emprego de bombas convencionais lançadas a partir de aeronaves da FAB. O caso foi melhor estudado pela III FAE e um plano foi traçado.
Toda a operação das aeronaves seria conduzida a partir da base aérea de Manaus, distante aproximadamente 1.060 km do alvo. O uso do aeroporto de São Gabriel da Cachoeira (SBUA) seria mais interessante, uma vez que a distância até o alvo seria reduzida para apenas 260 km. Embora possuísse uma pista asfaltada de 2.600m, o aeroporto não tinha condições de receber toda a infra-estrutura necessária para a execução da operação, que envolvia um número grande de aeronaves (somente em 2005 seria ativado o Destacamento de Aeronáutica de São Gabriel da Cachoeira – DASG). De qualquer forma o SBUA seria utilizado como aeródromo alternativo.
Para helicópteros e aeronaves menores, além do próprio SBUA, existia também a opção de utilizar a pista de terra de aproximadamente 800m de comprimento, existente na localidade de Tunuí, distante 210km para noroeste de São Gabriel da Cachoeira. A pista era bastante usada pela Fundação Nacional do Índio (Funai), que apoiava 230 índios Baniwas que viviam às margens do Rio Incana. Este era o ponto de apoio mais próximo do Cerro Caparro, cerca de 56km a norte.
O Comando de Operações Aéreas acionou o do 3º/10º GAv em 2 de novembro de 2003. Ao mesmo tempo, foram acionados o 1º GAvCa de Santa Cruz e o 1º/1º GT baseado no Galeão. O esquadrão Centauro mobilizaria cinco aeronaves (sendo um biplace), assim como o Jambock, com cinco F-5E Tiger II. O “Gordo” disponibilizaria dois Hercules KC-130. De Anápolis viria um avião de reconhecimento R-99A do esquadrão Guardião (2º/6º GAv).
Os A-1 e os F-5 executariam a missão de bombardeio. O KC-130 de reabastecimento aéreo seria utilizado por ambas as aeronaves durante o deslocamento. Cabia ao R-99A monitorar e coordenar toda a operação.
Uma fronteira ‘quente’
A operação não era exatamente algo que pudesse ser classificado como “rotina”. Existiam muitos fatores envolvidos, como questões geopolíticas, tráfico de entorpecentes, voos clandestinos e ações de grupos guerrilheiros.
Em maio de 2000, três caças A-37C da Força Aérea Colombiana derrubaram uma aeronave civil sobre o departamento de La Guajira. A mesma estava a serviço do narcotráfico e possuía matrícula venezuelana. Poucos meses depois, em outubro, dois aviões Rockwell OV-10 da Força Aérea Venezuelana e três helicópteros do exército daquele país realizaram um ataque próximo à localidade de Tres Bocas, região de Tibú, dentro do território colombiano. Naquela região atuavam guerrilheiros da AUC (Autodefensas Unidas de Colômbia), também conhecidos como “paramilitares”.
Embora os dois eventos citados acima sejam apenas exemplos dos problemas fronteiriços da Colômbia, eles demonstram a complexidade peculiar da região e o trânsito de grupos militares associados a narcotraficantes nas fronteiras políticas entre os países.
Executando a missão
No dia 3, com a presença de todos os integrantes na Base Aérea de Manaus, foram discutidos os detalhes da missão a ser executada no dia seguinte. A missão estava marcada para iniciar-se nas primeiras horas da manhã do dia 4 de novembro, mas houve uma surpresa desagradável.
As informações meteorológicas provenientes da região do Cerro Caparro davam conta de que o tempo não era favorável a uma ação daquele tipo. Existiam várias questões envolvidas. Primeiramente, o ataque com emprego de armamento real ocorreria bem ao lado da fronteira com outro país. Em segundo lugar, a serra ao lado da pista era um obstáculo natural à segurança das ações e deveria apresentar boas condições de visibilidade. Por último, o armamento empregado era do tipo convencional (bombas de queda livre Mk 83 de emprego geral) e uma boa visão do alvo era necessária.
No dia 5 de novembro, os aviões finalmente decolaram para a missão. Eram quatro A-1 e quatro F-5E apoiados por um KC-130H. Abordo do R-99 estava o coronel-aviador Azevedo Dantas, coordenando toda a operação. Cada uma das oito aeronaves de ataque transportava duas bombas convencionais de 500kg.
Quando chegaram sobre o alvo, o tempo estava ideal para a missão. O bombardeio ocorreu por volta das 11h30 da manhã (horário local) e cada uma das aeronaves lançou suas bombas sobre a pista. Ao final do ataque, era possível observar do alto cinco grandes pontos de impacto. Para cumprir a missão, cada um dos oito aviões foi reabastecido duas vezes pelo KC-130.
Depois do bombardeio, helicópteros que estavam estacionados em Tunuí foram deslocados até o Caparro para avaliar o impacto das bombas, assim como ter a certeza de que a pista estava completamente fora de operação.
Análise da operação
Não foi exatamente mais uma missão simples de bombardeio com aquelas comumente executadas nos estandes da FAB. Era um alvo bastante distante de qualquer ponto de apoio e a execução da missão necessitava de um bom planejamento logístico. A FAB trouxe esquadrões baseados na região Sul e Sudeste. A proximidade com a fronteira também era uma preocupação dos planejadores. A missão não poderia se tornar um incidente internacional.
Além disso, a Operação Princesa dos Pampas foi mais uma demonstração da enorme capacidade do A-1 de se descolar por este imenso país. A FAB, quando estipulou seus requisitos para um avião de ataque com longo raio de ação, tinha as suas razões. O mérito foi produzir um avião que atendesse exatamente estes requisitos. Não fosse a presença dos F-5E, os A-1 poderiam executar a missão com apenas um reabastecimento. Mais ainda, com a experiência adquirida na Operação Gama Centauro, um ataque a partir de Santa Maria seria totalmente viável.
No entanto, não podemos fechar os olhos para o pequeno leque de armas ar-superfície disponível no inventário da FAB. A ausência de artefatos mais modernos, com guiamento ou autodirecionáveis, é notória. Armas mais modernas associadas a sistemas avançados permitem atingir o alvo da mesma maneira e com grande precisão sem expor a aeronave e o piloto ao fogo proveniente de terra.
De qualquer forma, os objetivos foram atingidos e foi uma excelente oportunidade para testar os homens, as máquinas e as táticas da Força Aérea Brasileira. Com certeza, muitos ensinamentos foram extraídos de mais esta missão.