Arte retratando o Sukhoi Su-15TM Flagon-M abatendo o Boeing 747 do voo KAL 007 da Korean Airlines

Arte retratando o Sukhoi Su-15TM Flagon-M abatendo o Boeing 747 do voo KAL 007 da Korean Airlines

O abate do Boeing 747 Korean Airlines pela defesa aérea da então União Soviética em agosto de 1983 permanece no imaginário coletivo como um incidente ainda não totalmente esclarecido. Contudo, menos conhecidos ainda são os meses de confrontos velados entre aeronaves da IA-PVO e da USAF, que se seguiram à tragédia, em um jogo que poderia determinar o início da Terceira Guerra Mundial e insiste em permanecer envolto em mistério

Sérgio Santana*

Antecedentes

Horas após as estações de inteligência de comunicações e sinais do Japão terem detectado o intenso tráfego de diálogos e emissões eletrônicas que logo se transformaria na tragédia em que se converteu o abate do Boeing 747-2B5B, prefixo HL-7442, que executava o voo KAL 007 da Korean Airlines, por um interceptador Sukhoi Su-15TM Flagon-F pilotado pelo Coronel Gennadi Osipovich do 777º Regimento de Aviação de Caça, matando os seus 269 ocupantes na noite de 31 de agosto de 1983, foi dada a partida para uma desesperada corrida entre norte-americanos e japoneses de um lado e soviéticos de outro, para descobrirem o paradeiro dos gravadores de voz e dados, conhecidos como “caixas-pretas”, perdidos em algum lugar das águas internacionais próximas ao litoral nipônico, que dariam pistas para apontar o culpado pela destruição da aeronave.

Prevendo um natural aumento dos voos ocidentais de inteligência, que não hesitariam em aproveitar a ocasião para descobrir algo mais acerca da disposição das suas forças militares, o governo soviético ordenou já em 1º de setembro a atuação de interceptadores Mikoyan Gurevich MiG-21 “Fishbed” (baseados em Smirnykh) e MiG-23 “Flogger” (estacionados em Dolinsk-Sokol) para a zona de operações, próxima às Ilhas Sakhalinas, onde estava a maior parte dos destroços do Boeing abatido.

Também determinou que um pequeno grupo de instrutores habilitados no então novíssimo caça-interceptador Mikoyan-Gurevich MiG-31 “Foxhound” fosse destacado para o aeroporto de Yuzhno-Sakhalinsk, também naquele arquipélago.

Tendo voado pela primeira vez em setembro de 1975 e descrito pelo tenente Viktor Belenko que desertara para o Japão a bordo do seu MiG-25 “Foxbat” no ano seguinte como um “Super Foxbat”, o MiG-31 foi a primeira aeronave do planeta equipada com radar de varredura eletrônica, sendo armada com misseis de alcance tão longo quanto os Hughes AIM-54 Phoenix, então operado pelos F-14A Tomcat da Marinha norte-americana.

Até o momento daquele evento, entretanto, apenas três unidades haviam recebido o novo interceptador: uma do Centro de Conversão de Tripulações e Treinamento de Combate (TsBP i PLS, na sigla traduzida do russo) em Savasleyka e duas da Aviação de Caça da Força de Defesa Aérea soviética (mais conhecida como IA-PVO): o 786 IAP (sigla para Istrebitelnaya Aviatsionaya Polk, ou regimento da aviação de caça) baseado em Pravdinsk e o 174 IAP, estacionado em Monchegorsk.

O oficial encarregado de comandar o grupo de pilotos/operadores de armas de MiG-31, oriundo do 54º Regimento Guarda de Aviação de Caça “Kerchenskiy” (em honra da cidade de Kerch, que em 1944 foi liberada das forças nazistas com o auxílio do regimento), do TsBP i PLS, foi o Piloto-Inspetor Vladimir Ivlev, o único combatente que durante a “Operação Rimon 20” (uma fracassada operação aérea em julho de 1970 que envolveu pilotos soviéticos de caça voando MiG-21MFs estacionados no Egito contra seus rivais israelenses) conseguiu avariar uma aeronave adversária, o Dassault-Breguet MirageIIICJ de Asher Snir, vice-comandante do Esquadrão 119.

Um MiG-31 soviético exposto pela primeira vez no Paris Air Show em 1991

Os primeiros avistamentos do MiG-31 nos radares

Enquanto os “Foxhound” saíam de Savasleyka para Yuzhno-Sakhalinsk as forças ocidentais continuavam na busca pelas “caixas pretas” do Jumbo destruído. Para esta operação a Marinha norte-americana enviou aeronaves de patrulha naval Lockheed P-3C “Orion” dos esquadrões VP-4 “Skinny Dragons” e VP-40 “Fighting Marlins”. Nos primeiros voos, os “Orion” foram ameaçados pelos MiG-21/23, que chegavam perigosamente perto. Como medida de proteção, a Força Aérea dos Estados Unidos deslocou alguns dos seus então McDonnell Douglas F-15C “Eagle” operados pelo 12° Esquadrão de Caças Táticos na Base Aérea de Kadena para a localidade de Misawa, mais perto da zona de busca. Os “Eagle” operaram apoiados por Boeing E-3A/B “Sentry”, também baseados no Japão.

Aqui deve-se lembrar que o MiG-31 era cercado de mistério até então. Não se conhecia a sua identidade visual (o que somente aconteceu em 1985, quando pilotos de F-16 noruegueses o fotografaram) e seu armamento/equipamento eletrônico eram apenas estimados (a informação divulgada pela CIA era de que ele “tinha 4 mísseis guiados por calor e dois por radar”). O “Super Foxbat” despertou tamanho espanto que inspirou livros e filme (“Firefox”, escrito por Craig Thomas em 1977, a base para o filme homônimo, estrelado por Clint Eastwood cinco anos depois. Com o sucesso do filme, foi lançada a sequência do livro, “Firefox Down”) e já no traslado para a sua base temporária nas Ilhas Sakhalinas foi detectado voando a Mach 2.3 (2.440km/h). Em comparação o F-15C armado na configuração empregada naquele evento (4 mísseis AIM-9L Sidewinder e 4 mísseis AIM-7 Sparrow) e três tanques de combustível estava limitado a Mach 1.1 (1.167km/h).

Caso fossem autorizados a combater os MiG-31 os F-15C teriam que alijar os tanques e empregar uma tática desenvolvida para combater os MiG-25: subir para 40.000 pés (12.192m), acelerar para Mach 1.7 (1.803km/h) e disparar os quatro Sparrow.

Poucas horas após a chegada dos MiG-31 nas Ilhas Sakhalinas, um dos E-3 detectou uma daquelas aeronaves, mas não se sabe se o avistamento nos radares evoluiu para um combate, nem se houve situações similares. O que existe de confirmado oficialmente é que a presença dos F-15C na área cessou após 12 missões.

MiG-31

O novo alvo do MiG-31

Mas a dos MiG-31 não: decorridos alguns dias do abate, foi estabelecida uma nova unidade de “Foxhound”, o 365 IAP, em Dolinsk-Sokol, e o primeiro destacamento da aeronave, comandado por Vladimir Ivlev, voltou para a sua base após seis semanas de operações, cedendo lugar aos MiG-31 do 786 IAP, que em lugar do F-15C passou a perseguir outra presa: os Lockheed SR-71A “Blackbird” também baseados em Kadena.

A tática consistia em se aproximar em silêncio radar e rádio do SR-71A e após reduzir a distância para até 150km acionar o radar “Zaslon”, o que provocava a fuga do “Blackbird” em pós-combustão máxima. Os SR-71A “64-17960” e “64-17976” foram surpreendidos em novembro de 1983, enquanto o “64-17964” o foi em fins de março de 1984.

As missões contra os Blackbird continuaram até março de 1984, ano em que Ivlev foi promovido e passou a comandar o Distrito de Defesa Aérea de Moscou. Mas fotos e detalhes daquelas operações se encontram atualmente no Museu da Defesa Aérea em Moscou.

Ilustração de um MiG-25 engajando um SR-71
A partir da direita, Ivlev e seu grupo: major V.N. Tsybulin, tenente coronel Yuri I. Morin, tenente coronel Vladimir V. Ivlev e tenente coronel M.V. Subbotin
A partir da esquerda: Ivlev, Shakaev, Grekov e Bekrenev, em junho de 2011.jpg
Pilotos do 786 IAP

*Bacharel em Ciências Aeronáuticas (Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL). Pesquisador do Núcleo de Estudos Sociedade, Segurança e Cidadania (NESC-UNISUL). Pós-graduando em Engenharia de Manutenção Aeronáutica (Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC/MG). Autor de livros sobre aeronaves de Inteligência/Vigilância/Reconhecimento. Único colaborador brasileiro regular da Shephard Media, referência em Inteligência de Defesa.

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