A relação entre o real estado do poder militar venezuelano e a misteriosa estadia do Boeing 777 da empresa russa Nordwind
Sérgio Santana*
Poucos assuntos – se é que algum outro chegue a esse nível – tem despertado tantas reações antagônicas nas relações latino-americanas recentes quanto à crise no governo venezuelano.
Nos últimos dias surgiu um curioso ingrediente à questão, cujas raízes dispensam explicações porque já são de amplo conhecimento público: a estadia, no Aeroporto Internacional Simon Bolivar, do Boeing 777-2Q8 (ER), de matrícula nacional VP-BJG e operado pela companhia aérea Nordwind de bandeira russa, após um voo sem escalas com duração de 11h26min originado do Aeroporto Internacional de Vnukovo, na Rússia, do qual decolou em 28 de janeiro do presente ano.
“O voo do ouro”?
A Nordwind opera voos fretados (“charter”) e a Venezuela não consta dentre os seus destinos para o Hemisfério Sul, embora ofereça serviços para localidades em Cuba e Jamaica.
Outro detalhe surpreendente do voo é que, à exceção de duas tripulações completas, o VP-BJG não trouxe passageiros.
Na configuração adotada pela empresa, que possui seis exemplares do mesmo tipo na sua frota, o Boeing 777-200ER transporta até 440 passageiros. Os seus três compartimentos de bagagem, sob o piso principal, podem levar até 32 containers do tipo LD-3, totalizando 56.925kg, capacidade esta que pode ser substancialmente elevada na ausência de passageiros, embora fique longe do peso máximo de decolagem, da ordem de 297.000kg.
Considerando o histórico recente das idas e vindas do presidente Nicolás Maduro no afã de manter-se no poder, que tem incluído disposição de dialogar com o seu opositor Juan Guaidó e mesmo com o governo norte-americano (com o qual chegou a romper relações diplomáticas), ambas as tentativas tendo resultado em fracasso.
Não é difícil acreditar que a estadia do Boeing russo esteja mesmo a serviço do rumor mais atual sobre o assunto: a de que representaria um meio de transporte de Maduro e do seu círculo mais próximo de colaboradores para um exílio, junto com as reservas de ouro em seu poder, estimadas em 20 toneladas, na iminência de ser impossibilitado de continuar no comando do país, seja por uma guerra civil, um golpe militar ou uma intervenção estrangeira.
E que meio mais apropriado para isso do que uma aeronave comercial de bandeira russa, com alcance superior a 14.000km e capacidade comprovada de operar com apenas um dos seus dois motores por mais de 5 horas?
O real estado das forças armadas venezuelanas segundo uma testemunha ocular altamente especializada
Este mesmo rumor encontra ainda mais fundamento quando o real estado das forças armadas venezuelanas é analisado.
É fato incontestável que as mesmas estão equipadas com os mais letais sistemas de artilharia antiaérea da América Latina, reunidos no “CODAI” (Comando de Defensa Aeroespacial Integral), espalhados pelas regiões Oeste, Los Llanos, Central, Oriente e Guayana e organizados em seis Brigadas de Defesa Aérea. Dentre estes se destacam os Almaz Antey S-300VM Antey 500 (SA-23 “Gladiator”), capazes de atingir alvos distantes 200 km e voando a 30.000m de altura; os também Almaz Antey S-125 Pechora (SA-3 “Goa”), para objetivos a 80km de distância e 18.000m e, finalmente, os NIIP Buk M2 (SA-17 “Grizzly”), projetados para destruir alvos a 50km de distância e deslocando-se a 25km de altitude.
Também é indiscutível que a Força Aérea da Venezuela dispõe de uma das mais capazes aeronaves de caça e ataque do continente americano, na figura de 23 Sukhoi Su-30MK2V (“Flanker-G”).
Contudo, em que pese o valor dissuasório e a tecnologia avançada de tais sistemas, estes dependem tanto de recursos humanos treinados para operá-los quanto de recursos financeiros para mantê-los em condições de combate e assim atingirem plenamente a finalidade dos seus projetos.
Mas a realidade atual enfrentada pelas Forças Armadas daquele país vai na contramão das especulações que geralmente permeiam o tema.
Em conversa com Santiago Rivas, o maior especialista argentino em Defesa (sendo colaborador de várias publicações especializadas e autor de diversos livros na área, além de analista para a Argentina da famosa organização Jane’s) e que esteve na Base Aérea El Libertador há algum tempo, o autor deste texto soube que o moral das tropas era baixíssimo e o treinamento pobre, não havendo sequer disposição para o combate. O especialista acrescentou que os sistemas sofriam de má manutenção e consequentemente baixa operacionalidade e que no geral as defesas venezuelanas não resistiriam a sequer uma hora de ataque com mísseis de cruzeiro ou anti-radiação, com as bases sendo destruídas em bombardeios e que apenas um par de “Flankers” seria capaz de decolar, sendo em seguida facilmente abatido.
Santiago Rivas também adiantou que duvida da existência de um sistema de comunicações militares e que os já mencionados sistemas S-300 podem ser facilmente anulados, caso estejam operacionais, tanto por forças especiais quanto por ações de guerra eletrônica, levadas a efeito por uma provável coalizão.
Considerando o estado de coisas descrito acima e as prisões, levantes e deserções de militares venezuelanos que tem havido em tempos recentes, não será surpresa se Maduro resolver tomar o caminho do exílio a bordo do Boeing 777 da Nordwind Airlines, junto com a sua fortuna em ouro.
*Bacharel em Ciências Aeronáuticas (Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL), pesquisador do Núcleo de Estudos Sociedade, Segurança e Cidadania (NESC-UNISUL) e pós-graduando em Engenharia de Manutenção Aeronáutica (Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC/MG). Único colaborador brasileiro regular das publicações Air Forces Monthly, Combat Aircraft e Aviation News.