Bombardeiros Tupolev Tu-160 ‘ Blackjack’ na Venezuela: propósitos, implicações e possibilidades
Sérgio Santana*
Como tem sido comum nos últimos anos, quando voos de aeronaves militares russas voltaram a se tornar frequentes após o colapso da União Soviética em 1991, os dois bombardeiros estratégicos Tupolev Tu-160 “Blackjack” (registros RF-94108 “Vladimir Sudets” e RF-94102 “Vassily Reshetnikov”) que pousaram ontem no Aeroporto Internacional Simón Bolívar, Venezuela, distante alguns quilômetros do centro da sua capital, Caracas, evento mencionado aqui.
Após decolarem no entardecer do último domingo provocou o acionamento de vários interceptadores dos países da OTAN antes que chegassem ao seu destino: primeiro foram dois Lockheed Martin F-16 da Real Força Aérea da Noruega que decolaram da Base Aérea de Bodø às 0h45min da madrugada, seguidos de mais dois Eurofighter Typhoon FGA.4 operados pela Real Força Aérea do Reino Unido que foram lançados da Base Aérea de Lossiemouth às 2h25min e reabastecidos em voo por um Airbus A-330 Voyager, que decolou da Base Aérea de Brize Norton. Destaca-se o fato de que os Typhoon decolaram armados com mísseis ar-ar MBDA Meteor pela primeira vez em um acionamento “Alpha”, quando os invasores são reais.
Além dos “Blackjack”, que integram a 22ª Divisão de Bombardeiros Pesados estacionada na 6950ª Base Aérea em Engels, a comitiva também era composta por um quadrijato de passageiros Ilyushin Il-62M “Classic” registro “RA-86496” e outro de transporte Antonov Il-124 “Condor”, registro “RA-82035”, que partiram da Base Aérea de Chkalovsky, distante alguns quilômetros de Moscou, horas antes dos Tu-160 e cumpriram rotas distintas entre si e comparadas à dos bombardeiros, em um claro intuito de confundir as defesas aéreas europeias.
O mesmo destino, mas os tempos são outros
Esta é a terceira vez em dez anos que a Venezuela recebe a “visita” dos Blackjack. A primeira foi em setembro de 2008, seguida por outra missão do tipo, em novembro de 2013, quando os interceptadores IAI Kfir da Força Aérea Colombiana protagonizaram uma interceptação dos bombardeiros.
Entretanto, tanto para a Rússia quanto para a Venezuela os tempos são outros. No começo de 2014, o governo russo anexou a Criméia, após retirá-la da dominação da Ucrânia, que desde então tem estreitado as relações com as potências ocidentais até o ponto de ter atuado em um exercício conjunto com a OTAN, o “Clear Sky 2018”, que ocorreu entre 10 e 19 de outubro e que não agradou ao governo de Moscou a ponto de o mesmo ter apreendido, alguns dias depois, algumas embarcações da Ucrânia no Mar Negro, sob a alegação de que teriam adentrado águas territoriais russas, em um ato que claramente não teve a movimentação típica de uma apreensão de meios navais, porque envolveu voos aeronaves de ataque Sukhoi Su-25 “Frogfoot” e Kamov Ka-52 “Hokum-B” cruzando agressivamente o estreito de Kerch e o desembarque de forças especiais a partir de helicópteros Mil Mi-8 “Hip” em uma localidade sob domínio russo. Enquanto esta breve análise está sendo redigida, a Marinha norte-americana se prepara para enviar um navio ao Mar Negro, em mais uma etapa das tensões com a Rússia.
Do lado venezuelano, o intervalo entre a visita dos Tu-160 em 2013 e a atual presenciou o agravamento da condições econômicas e políticas, tanto interna quanto externamente, de modo que o país concentrou as atenções mundiais pela violenta repressão governamental aos protestos populares diante da crise (atribuída ao “imperialismo norte-americano”) e se envolveu em uma disputa fronteiriça com a arqui-inimiga Colômbia, que evoluiu para a perda de um dos 24 Sukhoi Su-30MK2V “Flanker-G” venezuelanos e sua tripulação em setembro de 2015, após acionamento noturno para conter possível invasão do espaço aéreo do país por aeronaves colombianas. A rapidez com que autoridades venezuelanas explicaram o acidente (atribuído à desorientação espacial seguida de um episódio de colisão controlada no terreno, mais conhecido no meio aeronáutico pela sigla CFIT, Controlled Flight Into Terrain) foi fonte de intermináveis debates na rede.
Mais recentemente a administração do presidente Donald Trump tem abertamente discutido a possibilidade de uma intervenção militar na Venezuela, para derrubar o governo de Nicolás Maduro e “restaurar a democracia”, no que já foi apoiado por declarações do General-de-Exército na reserva Hamilton Mourão, eleito vice-presidente na chapa de Jair Bolsonaro, segundo o qual “nossa próxima Força de Paz será na Venezuela”, ele mesmo um ex-adido militar no país entre 2002 e 2004.
Portanto, o envio à Venezuela de dois bombardeiros com capacidade de emprego de armamentos nucleares meros cinco dias após o presidente Maduro encontrar o seu colega Vladimir Putin tem propósito duplo: reforçar a mensagem de que o governo venezuelano não está sozinho caso um reforço na sua defesa se faça necessário (foi divulgado que as aeronaves russas se deslocaram para Venezuela a fim de participarem de um exercício conjunto) e comprovar que as Forças Armadas da Federação Russa podem levar ameaça aérea ao Caribe, do mesmo modo que as norte-americanas ao Mar Negro.
A presença dos Tu-160: implicação estratégica direta para a Venezuela
Embora se tenha como amplamente aceito que a Guerra Fria é coisa do século passado ou que a China tenha ocupado o lugar da extinta União Soviética ou da Federação Russa como contendor dos Estados Unidos a vinda dos “Blackjack” para a Venezuela atesta que estamos vivenciando um movimento típico dos momentos mais quentes da Guerra Fria.
Entretanto, findo o exercício conjunto o contingente russo retorna para casa e a Venezuela tenderá a ser ainda mais definida pelos seus já numerosos opositores e partidários de uma invasão ao seu solo existentes no governo norte-americano como “um país rico em petróleo sob o governo de um ditador que não apenas recepcionou forças militares russas, mas participou de um adestramento conjunto com elas”, o que por si só já aumenta a desconfiança neles gerada pelo governo de Nicolás Maduro.
Assim, existe um risco de que manobras militares como essa resultem em um efeito contrário ao que se pretende com a presença de aeronaves da classe dos “Blackjack”: um recrudescimento ainda maior, por parte da Administração Trump, em relação à Venezuela, sob o pretexto de eliminar o aumento da ameaça representada por bombardeiros com capacidade nuclear, e que possa levar a uma invasão liderada pelos Estados Unidos, com “justificativa humanitária”. A intenção dissuasória da sua presença teria exatamente o efeito contrário.
Sob esta perspectiva, a presença dos Tu-160 na Venezuela produz uma sensação de segurança e proteção cujos efeitos são meramente psicológicos.
Tal como esperado nestes casos, os acordos entre a Venezuela e a Federação Russa em matéria de Defesa não tem o seu inteiro teor publicado. Entretanto, pelo que se conhece de tais pactos, não abrangem a atuação direta de efetivos ou equipamentos russos em socorro dos venezuelanos, mas se restringem à troca de informações e no máximo ao intercâmbio de pilotos militares. Considerando isso, contudo, não é impossível que pessoal militar russo atue diretamente ao lado dos seus colegas venezuelanos ou mesmo tomando os seus lugares nos assentos dos “Flanker-G” .
E se…
A presença de aeronaves como o Tu-160 “Blackjack” em países como a Venezuela (considerando que exercícios conjuntos envolvendo aviões do seu porte e mais ainda a sua permanência em solo estrangeiro são muito raros) naturalmente desperta o surgimento de hipóteses quanto às possibilidades do seu emprego, caso exista uma escalada de tensões.
Todavia, se faz necessário lembrar que o deslocamento de “Blackjacks” até próximo à Venezuela em um cenário de conflito exige muitas movimentações por parte da cadeia de comando até que as aeronaves possam chegar ao seu objetivo, movimentações essas que são monitoráveis.
De acordo com a publicação “Russian Strategic Nuclear Forces” (Massachussets Institute of Technology Press, 2007), o nível de prontidão dos bombardeiros nucleares russos é elevado em período de tensão, mas a ordem para isto é emitida somente pelo Estado-Maior das Forças Armadas, após o que o efetivo das unidades da hoje denominada VKS (Vozdushno-Kosmicheskiye Sily, Força Aeroespacial) passa a reforçar os centros de comando. Se a tensão se elevar tais efetivos são ainda mais aumentados e aeronaves são enviadas das suas bases aéreas de tempos de paz para aeródromos de dispersão. Caso o nível de tensão continue a subir, as tripulações de solo recebem a ordem de retirar os mísseis de cruzeiro dos seus abrigos localizados próximos às bases, os abastecem com combustível, determinam os seus padrões de voo, executam cheques e carregam os mísseis nos bombardeiros e preparam esses para a decolagem, com as tripulações guarnecendo seus postos nas aeronaves, nos quais podem permanecer por até uma hora. A ordem de empregar armas nucleares é precedida da ordem de carregar os mísseis nos bombardeiros e da ordem de decolagem e pode ser transmitida ainda no solo ou em voo. Após a transmissão da ordem os bombardeiros devem seguir para seus alvos e alcançar os pontos de lançamento, o que será bloqueado caso as aeronaves não consigam atingir.
Obviamente que cada uma dessas etapas, como também ocorre nas demais potências nucleares, é passível de ser acompanhada por potenciais inimigos através de satélites, equipamentos de inteligência eletrônica e de comunicações, bem como por agentes de campo, infiltrados nos locais de interesse.
Tal rede de monitoramento, mesmo vencida com algum sucesso (e lembrando que estamos nos referindo a uma situação de conflito) vai resultar em um ou mais esquemas de interceptação de bombardeiros como os “Blackjack”; entretanto, tem sido comum que os Tu-160 e mesmo bombardeiros mais lentos, como o Tupolev Tu-95 “Bear”, atuem em um pacote de aeronaves, que inclui interceptadores Mikoyan Gurevich MiG-31 “Foxhound”, aeronaves de alerta antecipado e controle Beriev A-50 “Mainstay” e de reabastecimento Il-78 “Midas”.
Por fim, ainda que não necessite chegar a uma distância suicida do território norte-americano para disparar seus mísseis nucleares (doze misseis nucleares de cruzeiro Raduga Kh-55SM, com 3.500km de alcance e ogiva de 200 quilotons ou Raduga Kh-101, com alcance de até 5.000km, mas com ogiva nuclear de 250 quilotons, ambas as armas carregadas internamente em dois lançadores sêxtuplos), um Tu-160 em missão de ataque contra esse objetivo precisa superar barreiras designadas geralmente em situações de conflito, como Zonas de Exclusão Aérea e Zonas de Identificação de Defesa Aérea (ZIDA), esta existente também em tempos de paz e cuja função é o monitoramento do tráfego aéreo em benefício da segurança nacional; sua extensão varia de acordo com a conveniência de cada país, indo além do seu mar territorial e do seu espaço aéreo adjacente até o espaço aéreo internacional. A título de exemplo, a ZIDA em torno do Alasca possui 370 km de extensão a partir da costa.
Nos últimos anos vários voos de treinamento de bombardeiros estratégicos russos têm sido barrados na ZIDA norte-americana.
Enfim, tal como demonstrado, apoiar a defesa venezuelana com um voo de Tu-160 em tempos de conflito está longe de ser uma tarefa fácil.
*Bacharel em Ciências Aeronáuticas (Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL). Pesquisador do Núcleo de Estudos Sociedade, Segurança e Cidadania (UNISUL). Pós-graduando em Engenharia de Manutenção Aeronáutica (Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC/MG). Autor de livros sobre aeronaves de Inteligência/Vigilância/Reconhecimento. Único colaborador brasileiro regular das publicações Air Forces Monthly, Combat Aircraft e Aviation News.