Pouso de um F-103, Mirage, com o motor apagado
Por Elias Miana
Jaguar 14
Esta história começou a ser redigida em 1984, um pouco depois da ocorrência do incidente, a pedido de um companheiro, que desejava vê-la publicada em uma revista aeronáutica, como um meio de dar divulgação à comunidade aeronáutica, desse feito raro na história da aviação.
Começou, porque pensando melhor sobre o assunto, conclui que não seria oportuna a publicação naquela época, tão próxima do fato, que, se agradou a grande maioria, também causou reação adversa por parte de alguns poucos.
Passados quatorze anos, qualquer pudor em relatar o fato torna-se de todo dispensável, servindo, agora sim, para entretenimento e, quem sabe, de algum proveito para algum companheiro.
Transcreve-se o texto, como iniciado naqueles idos, com pequenas correções, mais de ortografia, ressaltando que a história é narrada pelo próprio avião, o Mirage no 4924.
Nunca consegui compreender porque fui batizado assim! Está certo, e até compreendo que certas pessoas tenham manias, costumes, desejos, que procuram atender, sem dimensionar os danos que podem causar a seus semelhantes. Assim surgem aqueles nomes estranhos, que tanto vemos, ouvimos dizer, e nos causam espécie, quando não risos.
No meu caso, aqueles que me batizaram tinham por costume dar prenomes idênticos, diferenciando um do outro pelo segundo nome. Como se fosse assim: José Maria, José João, José…
Adotado esse critério, no país do jogo do bicho, tínhamos o Mirage Avestruz, o Mirage Burro, etc, tocando-me, lamentavelmente, o Mirage Viado.
Desde novo fora vítima das maiores gozações. Mas avião não tem como recorrer à justiça pleiteando a mudança de nome, mais apelido que nome, a bem da verdade. Assim, suportava com o maior estoicismo a minha situação.
Mas agora, na minha idade? Quando me sinto velho, cansado, mal suprido durante anos, situação a que eu e meus irmãos sobrevivemos por amor próprio e pelo impagável privilégio de voar.
Cansara-me da gozação e de tão pouca atenção para comigo. Cansara-me. Não via mais futuro. Não tinha mais horizonte. Estava acabado. Eu não suportava mais viver!
Sendo inteligente, pelo menos razoavelmente em termos atuais, à época, arquitetei meu pensamento. Eu sabia que não me deixariam ir simplesmente. Eu era, e sou, voado por pilotos que sabem o que fazem. Mais que isso, eu os amo e me sinto amado por eles. Não poderia causar-lhes dano. Teria que me satisfazer sem feri-los. E eu pensava ter encontrado a fórmula: – criar uma situação tal, que suas próprias normas me façam abandonado à minha sorte.
Por várias vezes ensaiei o procedimento. Cheguei curto de combustível(1) por mais de uma vez, e os pilotos chegavam sempre curto, especialmente nas missões de combate! Mas como nem todos se aperceberam da deficiência que eu vinha criando, a possibilidade de feri-los era tamanha que eu abortava a conclusão. Queria a contribuição dos pilotos para o meu suicídio, mas não matá-los.
Chegou o dia. Eu cansado, minhas mazelas aparentes, e não as viam. Resolvi que chegara a hora. Saí para o vôo com um piloto de razoável experiência, que me queria muito, e, no fundo do meu ser também lhe queria muito bem. Ele por certo não se deixaria machucar pelo meu ato. A missão era das mais propícias. Era uma missão de combate dissimilar, com um AT-26, Xavante.
Como todos sabemos, é fundamental que os pilotos, nesse tipo de missão, tenham o olho pregado em seu opositor e que varram o céu à sua volta para não serem surpreendidos. Atentos à sua aeronave, sentem-na, muito mais que ficar observando ponteiros e luzes, para os quais, dirigem sua atenção em cheques breves e precisos.
Em decorrência, tudo se tornava mais simples. Bastaria repetir o que eu já havia testado, chegando desta vez até o final. Providenciei para que o detotalizador(2) não deduzisse todo o combustível consumido e não permiti que se acendesse a luz de baixo nível, que convenhamos, é escandalosa. Meu piloto portou-se como era de se esperar. Engajou três combates, ficando sempre próximo a Anápolis, tão próximo que foi alertado pelo controle radar de que saíra da área, adentrando na terminal(3) por mais de uma vez.
Tão próximo estava, que quando visualizou o detotalizador com 200 galões(4) entendeu seu viável fazer mais um engajamento, por mais rapidinho que fosse. Afinal estava cerca de 30 milhas(5) da base. Verdade é que o piloto estranhou o baixo consumo que eu lhe estava apresentando, mas como era a sua primeira missão contra uma aeronave de baixa performance, quis, para minha satisfação, entender que esse baixo consumo era devido à diminuição da arena de combate.
Quando encerrou o combate, fazendo o cheque de praxe, observou que o detotalizador indicava 100 galões, a distância da base de aproximadamente 28 milhas , e , estranhamente, o liquidômetro indicava 16 galões por tanque, ou seja, 32 galões, em tese, o bastante para voar 30 milhas. Imaginou que o liquidômetro estivesse baixo por efeito do último “G” que puxara(6) mas deixa estar que era, de fato, o combustível restante.
Observou a luz de baixo nível, não estava acesa. Acionou o botão que fazia movimentar as agulhas do liquidômetro. Elas não se movimentaram. Surgiu a dúvida quando ao funcionamento do inversor(7) que, logo a seguir, foi desfeita, estava operando.
Concluiu que aquele era o combustível restante e começou a fazer os cálculos de possibilidades. O combustível era, como já dissera, em tese, suficiente para atingir a base, ainda com o motor em funcionamento.
A altitude de 14.000 pés(8) para a distância, não contribuía muito para que o combustível fosse suficiente, apesar de ter entrado em regime econômico, logo no primeiro momento, e de estar, sob o controle do radar, dirigindo-se para a cabeceira mais próxima. Tomou a decisão de preparar-se para um pouso sem motor, mesmo que este ainda estivesse girando, por considerar essa a medida mais segura.
O céu apresentava uma pequena cobertura entre 8.000 e 14.000 pés, e eu não podia contar que ele, o piloto, proficiente em controle radar, fosse tão confiante a ponto de tentar o pouso sob controle cerrado do APP AN(9). Descuidara-me de um detalhe importante, mas estava feito, não havia como voltar atrás.
Penso que o piloto se considerava em vantagem sobre os outros pilotos, por confiar que a sua pequena estatura e pouco peso em muito lhe beneficiavam em caso de ejeção. Confiou-me que se sentia em condições de sair ileso, ainda que se ejetando no palier(10), naquele exato momento em que o afundamento pára.
Não permitiu que se acionasse emergência enquanto o motor estava funcionando. Sabia que outros pilotos, na melhor das intenções de ajudar, colocar-se-iam em contato, dando opiniões, quando não fora, uma ordem, para que se ejetara. Somente serviria para tumultuar. Melhor não!
O motor apagou-se a 14 milhas, a 14.000 pés, quando já se encontrava dentro da camada de nuvens.
O Controle lhe pergunta se vai se ejetar, recebendo como resposta, o pedido de orientação e distância para a pista.
Como se perde a “boule”, horizonte artificial(11) em forma de um globo, contendo os meridianos que informam os rumos, à época ainda considerado um instrumento preciso e moderno, e que todos os aviões comerciais atualmente, e desde há muito, possuem muito mais modernos e precisos, o piloto fica compulsado a voar pelos instrumentos de emergência.
Não sendo estes agrupados, cria-se uma dificuldade adicional para o piloto, que tem de verificar seu rumo na esquerda superior do painel, sua atitude na direita inferior, velocidade um pouco acima etc.
Confesso que hesitei nesse momento. Voando dentro de nuvens, ainda que leves, o piloto poderia desorientar-se, entrar em atitude anormal, vindo a falecer, o que eu absolutamente não desejava.
Aguardei para verificar como se portava. Se não correspondesse ao conceito que tinha dele, prosseguiria no meu plano, mesmo tendo que admitir essa ocorrência imprevista e indesejada. O piloto correspondeu às minhas expectativas, embora, como era de se prever, tenha um pouco a acostumar-se ao cheque cruzado dos equipamentos, que convenhamos, estão pessimamente distribuídos. Essa, é mais uma das minhas deficiências que espero ver solucionada.
Nesse sentido, pareceu-me até divertido que, quando perguntado por sua altitude, respondeu, com uma franqueza invejável: – “deixa ver, nem sei que altitude estou cruzando”.
Resolvi, uma vez mais, desistir de meu suicídio, não queria mais meu pensamento, enfrentaria tudo: é uma boa causa. Tornei-me, pois, o mais cooperativo possível. Nós iríamos pousar. Ele sabia como fazê-lo, havia treinado, apesar das condições não muito favoráveis, para não dizermos desfavoráveis, o seu conhecimento de mim e de controle radar iria nos possibilitar essa façanha.
O Controle Anápolis, TABA(12), não se ofendeu em ser chamado, durante toda a nossa descida, de THOR(13), isto era de menos. Tampouco tinha, de início, consciência da situação inusitada por que todos os três iríamos passar.
Ao primeiro contato, a primeira instrução de TABA foi para que iniciássemos a descida para 5.200 pés, no que não foi atendido, recebendo em resposta o pedido de confirmação de distância.
Transcreve-se:
-“Anápolis, estabilize pela esquerda 150o , descida econômica para 5.200 pés”
-“O THOR, eu tenho quantas milhas?”
-“20 milhas”
-“É muito para iniciar a descida no momento. Okapa?(14)”
-“OK. Informe sua altitude”
-“Eu estou agora na proa 150o , nível 130(15), minha conta corrente(16) deve ser … ínfima”
-“OK…”
-“Eu estou 00(17), confirme”
-“OK. Mantenha a proa, está na proa da inicial pista 24(18), para pouso direto, confirme?”
-“Afirmativo, do jeito que der eu entro.”
-“OK”
-“Confirme se deseja acionamento de emergência?”
-“Ainda não apagou”
Lapso de tempo, em que entra o “Branco Dois”(19) e recebe instruções para manter-se afastado, voando em segurança.
-“O Branco Uno, agora 13 milhas”
-“OK. Vou manter este nível só um pouquinho mais, OK?”
-“OK. Informaremos quando cruzar a décima (milha)”
-“Ciente”
-“Tá livre a pista prá mim né THOR”
-“OK. TABA está com pista livre, temos um vento de 9º com meia dúzia, faça curva à direita, estabilize 170o ”
-“Direita 170o”
-“Será vetorado para uma final para a pista 24”
-“OK companheiro, o motor acaba de apagar, eu estou 00”
-“OK, acionado emergência, plotado, informe para a ejeção?”
-“Negativo. Qual a minha distância?”
-“OK. 8 milhas”
-“8 milhas. (com interferência) tenta o alinhamento pra mim”
-“Afirmativo, mantenha a presente proa”
-“Mantendo”
-“8 milhas. (com interferência) tenta o alinhamento pra mim”
-“Afirmativo, mantenha a presente proa”
-“Mantendo”
-“OK. Motor cortado”
-“Avise caso vá fazer a ejeção. Estamos na escuta”
-“Ciente. Estou agora, cruzando, não sei nem que nível, cruzando 13 mil(20) ”
-“OK. Está fazendo curva a direita, deveria manter proa para encaixar na final”
-“OK. Estou curvando pela esquerda, me pare aí, que estou com bússola de emergência”.
-“OK”
-“Inicie uma curva leve á esquerda”
-“Iniciando”
-“Qual minha distância no momento?”
-“OK. Pare a curva agora”
-“Parado”
-“5 milhas”
-“5 milhas! Vou baixar meu trem”.
-“OK”
-“Daqui um pouquinho”
-“OK”
-“Curva a direita”
-“Direita”
-“Direita Top(21) “.
-“OK, estou indo para a direita”
-“Prossiga fechando mais à direita”
-“Fechando, estou cruzando, que nível agora?, estou cruzando 9 mil”
-“Fechando à direita, está a 4 milhas, entrando no alinhamento agora”.
-“OK. Manda eu parar a curva!”
-“Pare!”
-“Parada!”
-“A quatro milhas?”
-“Três agora, fechando mais à direita”
-“Mais à direita, trem em baixo”
-“OK. Está avistando?”
-“Afirmativo!”
-“OK. Assuma a navegação”
-“Assumindo a navegação, prepare
-“Assumindo a navegação, prepare a barreira(22) ”
-“OK”
Não se fala mais.
Aí, éramos eu e meu piloto. Ambos com um visual fantástico, embora não de todo diverso daquele que víamos durante o treinamento do tráfego simulado, tínhamos algo de marcante, algo de novo.
Dispensável recordar que, desde a vigésima milha, voávamos por instrumento. Certo que era leve, mas impedia totalmente a visão com o solo, com a Base, e por conseqüência, não tínhamos como avaliar a nossa distância e o nosso alinhamento com a pista.
O Controle radar fora perfeito, mas não impediu de chegarmos um pouco altos e desalinhados com a pista. Aí residia o fato novo, diferente dos treinamentos que efetuávamos. Não sabemos dizer, com segurança, se esse desalinhamento auxiliou-nos ou não, embora nos pareça que a visão desalinhada com a pista permitiu-nos uma melhor noção do afundamento, permitindo-nos um arredondamento(23) perfeito.
Nos conhecíamos bastante, sabíamos do meu imenso afundamento, assim, o fato de estarmos altos, não representava maiores problemas. De mais a mais, já conhecíamos a barreira, e, não restava nenhuma dúvida de que nos seguraria, apesar de termos tocado no meio da pista e chegarmos a ela, se não nos falha a memória, próximos dos 160 Kt(24) .
Estávamos salvos. Meu piloto e eu.
Decidi-me por continuar existindo. Apesar dos pesares, do nome e das gozações, dos problemas de manutenção e de suprimento, voar, com estes pilotos, ainda enobrece e dignifica a qualquer avião.
Até hoje, passados estes 14 anos, continuam me gozando, mas reconhecem, embora bem mais velho, dei exemplos de perseverança, mantive-me disponível como poucos, e já tive a honra de ser considerado o melhor avião do Grupo.
A la chasse!
Bordel!
Contada a história pelo FAB 4924, resta-me, como instrumento desse desejo manifesto pela máquina, retratar o que se passou com o piloto, que escreve estas linhas.
Embora tenha recebido o reconhecimento de Altas Autoridades da Aeronáutica, imerecido, o afirmo com convicção e sem falsa modéstia, porque, se não fosse viável, realizável, e com margem de segurança que, com meus conhecimentos e experiência, não me parecesse suficiente, nunca o teria feito.
Recebi também, e também imerecidamente, a oposição de alguns.
Houvera recebida, e aceito, convite para outra organização, que muito somaria aos meus conhecimentos e onde muito poderia contribuir para o controle de tráfego militar e as comunicações militares, operacionais e administrativas.
Assim, abandonei o sonho do jovem Cadete e Aspirante, que só é pertinente a Cadete e Aspirante, que era o de poder ficar até meus últimos dias montado em máquinas como o Mirage, para dedicar-me a outras áreas que, embora sem o mesmo sabor, sem o mesmo sal, sem a mesma satisfação, contribuíram para melhorias na operacionalidade da Aviação de Caça.
Dar-me-ia por feliz se tivesse convicção de que os pilotos, mais e menos experientes, mais ou menos antigos, aproveitaram da história para corrigir deficiências, para auxiliar uma melhor manutenção, para tratar os fatos como eles são, com realismo e isenção, sem vaidades, sem orgulhos feridos, preservando o espírito imorredouro da Caça, que eu entendo ser fazer o melhor, sempre o melhor, para a operacionalidade, para a missão, e não para si próprios.
Talvez, para encerrar, fosse admissível transcrever frase da lavra do Excelentíssimo Sr. Ten. Brig. Fernando de Assis Martins Costa: “Os nossos oficiais superiores deveriam ler mais nossas publicações técnicas e menos o tico-tico(25)“.
Elias Miana
Jaguar 14
FONTE: www.abra-pc.com.br – Associação Brasileira de Pilotos de Caça
NOTAS:
(1) – “curto de combustível” = o mesmo que “com pouco combustível”.
(2) – Detotalizador = instrumento que mostra digitalmente, quantidade restante de combustível no tanque (similar a um odômetro de carro).
(3) – Terminal = Área Terminal de Controle de Tráfego Aéreo (espaço restrito às operações de descida e subida das aeronaves em geral).
(4) – 200 Galões = aprox. 760 litros (1 gal = 3,785 lt).
(5) – 30 milhas = aprox. 56 km (1 milha náutica = 1,852 km).
(6) – “puxar G” = fazer curvas apertadas, gerando acelerações anormais.
(7) – inversor = equipamento elétrico que converte corrente contínua em corrente alternada para utilização de alguns instrumentos.
(8) – 14.000 pés = aprox. 4.270 metros (1 pé = 30,48 cm).
(9) – APP AN = Controle de Aproximação de Anápolis.
(10) – “palier” = parte da operação de pouso em que o avião fica paralelo ao solo antes do toque na pista (francês).
(11) – “boule” = instrumento que indica a posição do avião em relação à linha do horizonte (francês).
(12) – TABA = nome código da torre de controle da Base Aérea de Anápolis.
(13) – THOR = nome código do controle de operações militares de defesa aérea.
(14) – “Okapa” = OK.
(15) – nível = corresponde à altitude em centenas de pés. No caso, nível 130 corresponde a 13.000 pés.
(16) – “conta corrente” = significa a quantidade de combustível ainda existe no avião (saldo).
(17) – 00 = estou com “zero” galões de combustível.
(18) – pista 24 = pista de pouso cuja direção magnética é de 240 graus.
(19) – “Branco Dois” = avião número “dois” da esquadrilha “Branca”.
(20) – 13 mil = 13 mil pés.
(21) – “top” = o cumprimento das instruções do radar de aproximação de precisão deve ser executado quando seguido da palavra “top” (no caso significa: – “faça curva imediatamente para a direita”).
(22) – Barreira = barreira, similar a uma rêde de lona, que é levantada no fim da pista para “segurar” os aviões que tenham problemas de parada antes do término da pista.
(23) – arredondamento = parte da operação de pouso em que o avião troca a atitude de planeio (descida) pelo vôo paralelo ao solo antes do toque na pista.
(24) – 160 kt = aprox. 295 km/h (1 kt = 1 nó = 1,852 km/h)
(25) – “Tico-Tico” = livreto em que são listados os oficiais por ordem de posto e de antiguidade. Nele se pode avaliar quanto tempo falta para a próxima promoção!