Projeto Kfir C10 para a FAB: ‘história jamais contada’
Publicamos novamente o texto do brigadeiro Lauro Ney Menezes sobre a aquisição do Kfir, que foi avaliado como caça ‘tampão’, mas acabou não sendo adquirido pela FAB
Lauro Ney Menezes – Maj. Brig. Ref.
(Fórum no 35, set/out 2012)
Para situar apropriadamente o projeto do título, é indispensável reportar-se ao “longo e badalado” período em que a FAB viveu (e sonhou) com uma nova aeronave de Caça capaz de ocupar o espaço proveniente da desativação do F-103 MIRAGE, que estava prevista para Dez 2005: o Projeto FX.
O “tempo” era 2003, quando, com a mortalidade do Projeto PHOENIX, o Governo Federal aprovou o “Plano de Fortalecimento do Controle do Espaço Aéreo Brasileiro”.
Para analisar com veracidade o mencionado período é, também, imprescindível que haja desprendimento, por parte da Organização, para arcar com o ônus proveniente de nenhuma iniciativa (técnica/operacional) ter sido tomada em tempo suficiente para neutralizar ou minimizar os impactos negativos da “antecipação da caducidade” dessa fabulosa máquina de guerra, MIRAGE III proveniente da falta de medidas corretivas que deveriam ter sido tomadas em tempo útil.
Este relato não é apenas o testemunho de um profissional e observador FABiano já que – uma simples consulta a qualquer documento de referência sobre aeronaves de combate do mundo – comprovará que o Brasil foi o único operador do MIRAGE que nada fez em proveito da extensão de sua vida operativa, quer seja através da modernização de seus sistemas (radar e complementos), remotorização, melhoria de desempenho (manobrabilidade), melhoria de capacidade operacional (reabastecimento em voo), modernização de armamento/missilística (eternizamos o míssil adquirido em 1972) e correção de defauts de jeunesse advindos da fabricação original (compartimentação dos tanques externos p.ex.).
Da leitura da documentação do fabricante e da análise dos dados existentes em poder da FAB, concluir-se-á que os MIRAGE IIIEBR brasileiros representam a frota desse tipo mais jovem do mundo a ser retirada do serviço já que as aeronaves foram fabricadas para uma vida útil de 8000 horas e o nosso “vovô” não possuía mais de 4000 horas de voo, todas elas utilizadas apenas em missões de DA, sem comprometimento das estruturas em missões de ataque ao solo!
Dirão os leitores: essas considerações não se relacionam com o título da matéria. O autor concorda. Entretanto, o objetivo é situar o mencionado projeto (como já mencionado) no seu devido espaço e tempo (do Brasil e da FAB). Voltemos, pois, ao começo de tudo: o Plano de Reequipamento da FAB (Projeto PHOENIX) que, muito apropriadamente, pretendia revitalizar o material aéreo da FAB e “extraí-lo das cinzas em que se encontrava”… Daí – dentre outros – surgiram os Projetos FX, PX, CX, ALX, AMX, F5, MoD, etc.
Enquadrado na temática desse assunto, estava o Projeto FX que – à época e com a antecipação adequada – levantava a necessidade de planejamento, estudos, análises, definição de requisitos e ações para enfrentar a obsolescência do nosso interceptador principal, o F-103. Àquela época, já se estimava que sua mortalidade logística (e, principalmente, operacional) ocorreria em Dez 2005.
Nada a contestar visando respeitos das medidas e ações praticadas pelo operador (COMGAR), Planejamento (EMAER) ou “estudador- contratante (DEPED/COPAC)”. Todo o processo transcorreu com a necessária expertise e competência. A conduta para realizar o Projeto FX merece um relato especial e descomprometido, que não é nosso propósito.
Ao listar e avaliar as informações, prazos e condições, etc., etc. oferecidas por qualquer indústria concorrente, em busca de “nichos de oportunidade” no terreno das licitações mundiais de material de Defesa, facilmente um analista se daria conta que, por mais que se esforçassem os grupos fabricantes envolvidos em atender aos RFP do FX, havia um “espaço vago” (nicho) não preenchido por nenhum dos concorrentes.
Esse “trou” estava explicitamente caracterizado nos cronogramas de entrega de quaisquer dos novos aviões oferecidos por todos os concorrentes, espaço vago esse que correspondia ao espaço de tempo existente entre a assinatura do contrato de aquisição (e a consequente data de entrega do novo produto) versus a data de mortalidade do F103 (26 Dez 2005).
Leia-se aqui: “reposição das máquinas já desativadas àquele momento”… Nenhuma das propostas poria em serviço operacional seu produto até (ou antes) daquela data do anunciado falecimento do F-103. Ou seja: os F-103 iniciariam sua “corrida para o corredor da morte” e a Unidade iria “groundeando” gradativa e continuadamente suas máquinas, perdendo sua já (extremamente) prejudicada operacionalidade para a missão DA. Os radares CYRANO estavam de tal forma degradados que os combates dissimilares foram suspensos, tal a “cegueira” que tomara conta dos radares de bordo. Nesse preciso momento o GDA estava, em verdade, equipado como “XAVANTÔES cegos a Mach 2.0…”, diziam seus pilotos.
Como consequência da desativação do F-103, com base no Plano PHOENIX e nos estudos do COMGAP, a FAB já havia interrompido as aquisições de peças de reposição, recompletamento de estoques nas prateleiras e – principalmente – interrompidas as revisões gerais dos motores ATAR 9C (por razões óbvias e decorrentes do enorme custo, que era superior a US$ 1.2 milhão/motor). Apesar dessas limitações, a Unidade lutava para obter disponibilidade diária que não chegava a ser superior a 44% e voar não mais do que 110 horas/anv/ano! Em contrapartida, despendia cerca de US$ 10.000/hora de voo e tinha um dispêndio (total médio de manutenção anual) entre US$ 18mi/US$ 19 milhões.
Todos esses valores (obtidos com o COMGAP) conduziam para o agravamento da situação, cuja solução somente seria encontrada com a entrada em serviço do FX (qualquer deles). Isso somente ocorreria (de acordo com qualquer dos contratos em estudos) entre 3 e 4 anos (tempo consumido entre a apreciação pelo Conselho de Defesa Nacional e a ordem de aquisição até ativação operacional plena em Anápolis). Assim previam todas as propostas de fornecimento comprometidas com o Programa FX.
Partindo da premissa que o MIRAGE tinha data de falecimento e era inexorável (26 dez 2005); que o calendário de todas as propostas indicavam um vazio operacional de 3 a 4 anos e que a “morte por inação do material do GDA” era inaceitável; que os recursos para investimentos deviam ser totalmente canalizados para o Projeto definitivo, que era o FX; que qualquer que fosse a solução adotada, a FAB continuaria despendendo entre ÜS$ 18 mi/US$ 19 mi por ano, sem nenhum ganho operacional e; que os cronogramas (desativação F103 e ativação FX) eram inexoráveis, a solução “paliatória” (paliativa e provisória) mais aceitável para a Administração da FAB era buscar uma plataforma cuja similaridade com o F103 fosse tão elevada que não compelisse a novos e indispensáveis e enormes investimentos, até o recebimento do FX: aquisição de equipamentos e/ou ferramental, novas instalações fixas, treinamento do pessoal de logística e de pilotos, que assegurasse o aproveitamento de todo material de reposição já existente (e aplicável ao F103), que demandasse o mínimo consumo de tempo para a transição ao novo avião (pilotos e mecânicos), que assegurasse entrada em serviço entre 6 a 10 meses após contrato (evitando a morte do F-103), dispêndio financeiro de manutenção semelhante ao que já ocorria orçamentariamente por ano (US$ 16 mi/US$ 19 mi) e que, ainda, oferecesse maior índice de disponibilidade diária do material aéreo e, maior número de horas de voo voadas por avião/ano comparativamente ao que vinha sendo obtido. Ou seja: similitude do material já apoiado pelo sistema logístico da FAB que era o F-103, e – PRINCIPALMENTE – apresentasse ganho efetivo de operacionalidade no cumprimento das tarefas de DA (radar de última geração, sistema de armas modernizado e missilística atualizada), com os mesmos (ou menores) dispêndios de custeio e, principalmente, nenhum investimento…
Estavam, portanto, sinalizados os parâmetros que deviam reger a eleição de uma plataforma-ínterim, que faria obturar o mencionado espaço de tempo existente (3 a 4 anos) que todas as propostas dos concorrentes ao FX apresentavam. A ideia base era evitar a mortalidade do GDA, enquanto o Programa FX estivesse em curso, além de não realizar investimentos novos durante esse período de espera.
Admitir-se-ia, apenas, realizar os dispêndios orçamentários (já praticados) para com os serviços (manutenção da frota), buscando o aumento da operacionalidade da Unidade Aérea, que estava totalmente degradada.
Conclui-se, portanto, que as palavras-chaves do programa-ínterim seriam compatibilidade e similaridade (custo-benefício) com a aeronave MIRAGE F103, acrescidas das exigências de modernidade de sistema de armas, melhor operacionalidade, melhor disponibilidade e maior atividade aérea e mesmos dispêndios… Sobrevida, portanto, com mais vitalidade. Porém, com interinidade: o vetor que viesse a ser incorporado para “tapar o buraco” seria episódico. O FX é que seria o definitivo…
Para atender a essas premissas, nenhuma plataforma existente no acervo mundial, e em estado operacional (mesmo que usada), suplantaria a aeronave israelense IAI-KFIR versão C10 (de berço francês-MIRAGE com 66% de similaridade com o F-103), equipada com radar multimissão de 4a geração (ELTA 2032), motor de maior potência J79 – do Phantom F-4 (19000lb Empuxo) – e armamento atualizado e já integrado ao avião (itens tais como missilistica inteligente, bombas guiadas, míssil BVR e armamento convencional).
A proposta KFIR à FAB
Sempre com as condicionantes de interinidade, compatibilidade, similaridade, custo-benefício, modernidade e operacionalidade em vista, a proposta oferecida à FAB pela IAI-Israel Aircraft Industries (Divisão LAHAV) em 2002 tinha a seguinte composição e compromissos contratuais:
- manter o despêndio anual orçamentário (custeio) igual ou menor do que o valor do montante de despêndio anual já praticado (US$16-US$ 19 mi) e que, à época, correspondia a manter média de disponibilidade dos F-103 em torno de 30% e voar, em média, cerca de 1400hs-1600hs/ ano (+/- 110h/anv/ano) pela Unidade.
- assegurar que a transição de pilotos e mecânicos seria feita em curto prazo (estimado 30 dias).
- utilizar todo o equipamento de apoio, AGE, bancadas, ferramental e bancos de teste em uso para o F-103, nada adquirindo para suprir possíveis necessidades.
- assumir todos os itens de reposição e material aplicável ao F-103 em estoque no PAMA-SP e BAAN para consumo durante a execução do contrato, reduzindo, pois, o custo final do Programa.
- incorporar ao contrato a manutenção dos 4 MIRAGE F-103D existentes na frota da FAB, (que não seriam desativados), oferecendo os mesmos índices aceitos para os KFIR.
- realizar toda a manutenção (pista, Base) com o próprio pessoal da FAB, sem assistência técnica permanente da IAI.
- entregar o primeiro lote de 4 aviões KFIR- C10 em 6 a 10 meses e entregar a última aeronave em 16 meses, a partir da assinatura do contrato.
- assegurar, contratualmente, a disponibilidade diária de 65%, arcando com penalidades, caso houvesse não cumprimento da meta contratual.
- assegurar o mínimo de 165h/voo/anv/ano, arcando com penalidades por não cumprimento da meta contratual.
- assegurar o fornecimento de todo e qualquer item de reposição ou peças necessárias, sem qualquer ônus para a FAB.
- oferecer um contrato (CLS) de 3 anos apenas, extensível por mais 2 anos (caso a FAB desejasse mais tempo para o recebimento de qualquer FX).
- equipar a aeronave com o radar multimissão de última geração ELTA 2032 (já escolhido para o P3BR) pela sua excelente qualidade de desempenho (entre os melhores do mundo). Oferecer sistema de armas e missilística idêntica às especificações do FX, já integrado na aeronave,assegurando o “salto tecnológico” pré-FX que a FAB necessitava. A proposta poderia ser do tipo, leasing ou aquisição (com a possibilidade de aceitar os 12 F-103 brasileiros como parte do pacote financeiro de pagamentos).
O Andamento da Proposta
Com base na total palatabilidade da proposta, o ALTO COMANDO da FAB opinou por unanimidade, a favor do projeto, por duas vezes (publicado em Bol. Periódico do CECOMSAER de 31 Jul 2002).
A FAB realizou três (avaliações) do material no transcurso dos anos 2002 a 2005: uma com voo em aeronave KFIR CE 2000 (similar ao C10) da FAe do Equador e enviou duas missões, em períodos distintos, para avaliação em Israel. As equipes (pilotos, engenheiros e técnicos) conheciam profundamente o MIRAGE F-103, e puderam constatar in loco a similaridade e comunalidade entre as máquinas, seus equipamentos de suporte logístico, assim como o preenchimento de todos os requisitos para uma aeronave-episódica… não concorrente nem competitiva com o FX: apenas interina. Apesar de tudo, o Projeto foi “degolado”, sem considerações adicionais ou argumentos sólidos, em Jan 2006. Caso a FAB tivesse firmado o contrato KFIR C10:
- despenderia em 5 anos entre U$$ 84 mi/U$ 92 mi (menos de US$ 18 mi/ano) para obter um ganho expressivo de operacionalidade e impedir a mortalidade do GDA.Kfir
- não despenderia um centavo em investimentos (aquisição de material) e só continuaria com as despesas de custeio, já em curso…O KC10 era 66% similar ao MIRAGE IIIE.
- não haveria o gap operacional do GDA, “obturado” com os voos do AT-26 em Anápolis (e a DA?)
- não teria esperado 2/3 anos para receber as aeronaves MIRAGE 2000 um interceptador (?) só com apenas mais 5 anos de vida útil! Ou seja, “exéquias em 2012”!!
- não despenderia um centavo, até receber o definitivo FX (já que o “FX não morreu”…). Hoje a DIRMAB paga até arruelas e parafusos “não contratuais”, pois nenhum equipamento por mais simples que seja(escada para galgar a nacele, macaco de roda, simulador, banco de motor, etc.) do F-103 são inaplicáveis ao M2000!
- não tocaria em um tijolo das instalações do GDA ou da BAAN que, da forma como está posta assumiria, o KFIR C10, sem “nenhuma dor”…
- manteria o moral da Unidade intocada, sem submetê-la à “degradação operacional” oriunda da espera… fazendo “hora de jato”… (maquinetando sem missão definida), e com um efetivo reduzido, apenas para fazer constar que estava com vida… e não desfalecida.
- respeitaria as duas votações unânimes por parte do Alto Comando e que, com base em demonstração da unicidade de posições e coerência, permitiu que o Comandante (à época) abordasse o Projeto KFIR C10 ao próprio Presidente da República, tendo dele recebido aprovação em tese, como “solução interina” para a “crise da DA” do Brasil. Não a pôs em prática por razões de momento político: transição de GOVERNO e mudança da Administração da Força Aérea…
- teria mantido incólume e ininterrupta a DA (hoje realizada a custos gigantescos (financeiros e operacionais) com a manutenção de F5E deslocados em Anápolis (à época): operação “tapa buraco”…. E, finalmente, as razões apresentadas para justificar (na realidade, contestar as decisões de unanimidade tomadas pelo Alto Comando) só se basearam na chamada de “razões da Administração”: as simple as that!
Esta é a verdade verdadeira do natimorto Projeto KFIR C10. O resto… é o resto. A história aqui está registrada pelo ator que viveu (e sofreu) todos seus longos minutos e assistiu à mortalidade induzida do nosso valente MIRAGE F-103 e o descuido no cumprimento de nossa missão-primeira: a DEFESA do ESPAÇO AÉREO BRASILEIRO!
Este é também, um relato-homenagem à decisão corajosa de uma Administração que resolveu enfrentar o caos da DA com uma solução hors cadre, para o reequipamento da Força: interinidade para atingir a modernidade duradoura, no futuro.
Em analisando o andamento do Projeto FX2, encontramos similaridades com a estória aqui relatada, pois, “falecendo” o MIRAGE 2000 em 2012, qual será a “solução interina” capaz de sustentar a DA incólume?
Recordar é viver…
Lauro Ney Menezes – Maj. Brig. Ref.
Piloto de Caça – Turma de 1948
FONTE: www.abra-pc.com.br
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