Ele vai voar? (PARTE II)
O texto abaixo foi publicado na edição de setembro da revista norte-americana Vanity Fair. O site do Poder Aéreo traz com exclusividade a tradução da reportagem, em quatro partes. Para ler a primeira parte clique aqui.
II. “Prática ruim de aquisição”
A Union Station de Washington, cuja arquitetura lembra, em parte, as Termas de Diocleciano, é uma entrada apropriada para uma cidade que continua a gastar com os militares como o império abandonado. No início deste ano eu estava aguardando um telefonema no meio de multidões de viajantes como eu. Assim que recebi a ligação, fui informado para seguir para o piso superior do Café Central, que ocupa uma plataforma circular com uma visão de 360 graus do lobby abaixo. O homem que eu estava por conhecer – chamarei de “Charlie” – é uma fonte bem posicionada com uma década de experiência no programa Joint Strike Fighter, dentro e fora do Pentágono.
Charlie explicou que a escolha de local de reunião foi menos paranóica do que prática: o programa JSF é tão grande, financeiramente e geograficamente – e saturado com tantos lobistas, executivos, assessores do Congresso, burocratas do Pentágono e funcionários designados – que é preciso um esforço considerável em Washington para evitar esbarrar em alguém ligado ao programa. E ele não queria esbarrar em ninguém. Charlie pediu que eu escondesse sua identidade para que ele pudesse falar abertamente.
No decorrer desta e de muitas outras conversas, Charlie passou pela conturbada história do avião e tentou separar os rosados pronunciamentos de relações públicas do que ele via como a dura realidade.
“O jato deveria estar totalmente operacional no momento e é por isso que eles colocaram pessoas em Eglin em 2010/2011, e eles esperavam um jato totalmente funcional em 2012”, disse ele. “Mas a única missão militar que esses aviões podem executar é uma missão Kamikaze. Eles não podem lançar uma única bomba real em um alvo, não podem engajar aeronaves de combate. Há limitações no voo por instrumentos (IFR – Instrument Flight Rules), o que é necessário para se voar um avião com mau tempo ou à noite. Qualquer licença de piloto na aviação civil diz que ele pode decolar e pousar com um clima perfeito. Então eles fazem o curso de instrumento, posteriormente. O que o programa está dizendo é que o JSF, o maior e mais recente caça dos EUA, está impedido de voar em condições meteorológicas por instrumentos, algo que um Cessna que custa 60 mil dólares pode fazer”.
Charlie citou uma reportagem sobre Frank Kendall, subsecretário de Defesa do Pentágono para aquisição, que em 2012 tinha usado as palavras “prática ruim de aquisição” para descrever o processo de projeto e produção do Joint Strike Fighter. (Em junho de 2013, Kendall soou mais otimista durante uma teleconferência comigo e com outros jornalistas: “Eu acho que todos nós estamos encorajados pelo progresso que estamos vendo. É muito cedo para declarar vitória. Temos um monte de trabalho a fazer. Mas este programa está em bases muito mais sólidas, mais estáveis do que era há um ou dois anos”).
Sem se incomodar com a mudança de tom de Kendall, Charlie insiste que os problemas técnicos continuarão a atormentar o programa. “Você pode dizer que a raiz dos problemas do avião hoje está no período 2006-2007”, explicou. “O programa estava em um ponto crítico e a Lockheed precisava provar que poderia atender às exigências quanto ao peso da aeronave.” Isso, diz ele, levou a uma série de decisões de risco no projeto. “Eu posso te dizer, não havia nada que eles não fizessem para passar pelas revisões. Eles cortaram arestas. E por isso estamos onde estamos”.
Apesar de reconhecer que o peso era uma questão premente, o porta-voz da Lockheed Martin, Michael Rein, disse-me que os projetos de revisão em 2006 e 2007 foram feitos em conjunto com funcionários do Pentágono e com a bênção deles. Ele negou veementemente as arestas cortadas ou de alguma forma o comprometimento da segurança ou de seus valores fundamentais.
III. Gestão sem por a mão
Em 26 de outubro de 2001, o Pentágono anunciou que havia escolhido a Lockheed Martin no lugar da Boeing para construir o que a Lockheed prometeu que seria “o caça de ataque mais formidável já operado”. O que o Pentágono exigia era muito: construir um caça-bombardeiro de próxima geração que poderia ser usado não só pelos militares dos EUA, mas também por nações aliadas (que viria a incluir o Reino Unido, Itália, Holanda, Turquia, Canadá, Austrália, Dinamarca, Noruega, Japão e Israel).
Em cima disso, deveriam ser produzidas três versões do avião – a versão convencional para a Força Aérea, uma versão de decolagem curta e pouso vertical para os Fuzileiros Navais, e uma versão embarcada para a Marinha. A ideia era que um único avião multitarefa, furtivo e supersônico poderia substituir totalmente quatro tipos existentes de aeronaves. A expectativa era de que esse novo avião faria tudo: combate ar-ar, bombardeio em profundidade e apoio aéreo aproximado.
A Lockheed Martin ganhou o contrato no valor de mais de US$ 200 bilhões, depois do que ficou conhecido como a “Batalha dos aviões-X”. Na verdade, não era exatamente uma competição. O X-32 da Boeing, produto do trabalho de apenas quatro anos, empalideceu ao lado do Lockheed X-35, que vinha sendo desenvolvido de uma forma ou de outra desde meados da década de 1980 graças a incontáveis milhões em fundos de orçamentos secretos que a empresa havia recebido da Defense Advanced Research Projects Agency (DARPA) para desenvolver uma aeronave supersônica de decolagem curta e pouso vertical.
Para transformar o protótipo do X-35 numa frota de caças F-35, a Lockheed Martin baseou-se em duas práticas de aquisição aparentemente distintas, mas igualmente controversas. No jargão militar, estas são conhecidas como “comunalidade” e “simultaneidade”.
Comunalidade significa simplesmente que as três variantes do F-35 compartilham partes e componentes de alto custo, como a estrutura, os aviônicos e os motores. Supunha-se que isto ajudaria a garantir uma aeronave “acessível”, um termo que a empresa e os gestores do Departamento de Defesa invocam com a frequência de um canto Vajrayana. Mas a semelhança realmente não aconteceu.
O plano original era de que aproximadamente 70% de todas as partes dos aviões fossem de uso comum, e o número real de hoje é de cerca de 25%. Comunalidade, mesmo neste nível reduzido, tem consequências inesperadas. Quando uma trinca em uma lâmina de turbina de baixa pressão foi descoberta num motor de F-35A no início deste ano, funcionários do Pentágono tomaram a única atitude responsável, uma vez que a peça é usada em todos os modelos: “groundear” (impedir de voar) toda a frota de F -35, e não apenas os que voavam pela Força Aérea. Em seu depoimento em junho, Gilmore revelou outro evento menos conhecido, quando toda a frota de F-35 foi “groundeada” em março de 2013 após a descoberta de “desgaste excessivo da dobradiça do leme”.
Desde o início, a Lockheed Martin convenceu os funcionários do Pentágono de que a inovação tecnológica, incluindo a forte dependência de simulação por computador, poderia tomar o lugar dos testes do mundo real, mantendo assim os custos baixos. O Pentágono comprou essas garantias e permitiu que a empresa projetasse, testasse e produzisse o F-35, tudo ao mesmo tempo, em vez de insistir que ela identificasse e corrigisse defeitos antes de dar início à sua linha de produção. Construir um avião, enquanto ele ainda está sendo desenvolvido e testado é conhecido como a simultaneidade. Com efeito, a simultaneidade cria um caro e frustrante ciclo de não decisão: construir um avião, pilotar um avião, encontrar uma falha, projetar uma correção, adicionar as correções às aeronaves produzidas, repetir o processo.
O vice-almirante David Venlet, que gerenciou o programa JSF até o final do ano passado, reconheceu o absurdo em uma entrevista para a AOL Defesa: “Você gostaria de ter as chaves do seu novo e brilhante jato de combate e entregá-lo à frota com toda a capacidade e toda a vida de serviço que eles querem. O que estamos fazendo é levar as chaves do novo jato brilhante, entregando-o à frota, e dizendo: ‘dê-me aquele jato de volta no primeiro ano. Eu tenho que levá-lo até o parque de material por um par de meses, abri-lo e adicionar algumas modificações estruturais, porque se eu não fizer isso, não conseguiremos voar por dois, três, quatro, cinco anos’. Isso é o que a simultaneidade está fazendo conosco”.
A esse problema se soma a política de “gestão sem por as mãos” do Pentágono, uma cria da desregulamentação promovida nos anos de 1990. Na época em que o contrato do F-35 foi escrito, o Pentágono estava operando sob um princípio chamado de Responsabilidade Total do Desempenho do Sistema. A ideia era que a supervisão do governo era demasiadamente morosa e cara. A solução foi colocar mais poder nas mãos das empresas. No caso do Joint Strike Fighter, a Lockheed Martin recebeu responsabilidade quase total para o projeto, desenvolvimento, testes, introdução e produção. Nos velhos tempos, o Pentágono teria fornecido milhares de páginas de especificações. Para o Joint Strike Fighter, o Pentágono deu à Lockheed um pote de dinheiro e um esboço geral do que era esperado.
Buscar o custo real do Joint Strike Fighter é um exercício enlouquecedor, pois são empregados vários métodos de cálculo, juntamente com acronismos bizantinos, que desembocam em números que servem a determinados interesses. De acordo com o Government Accountability Office (GAO), que é relativamente independente, o preço de cada F-35 deveria ser de 81 milhões de dólares quando o programa começou em outubro de 2001. Desde aquela época, o preço por avião basicamente dobrou, chegando a 161 milhões dólares. A produção em larga escala do F-35, que deveria começar em 2012, não ocorrerá antes de 2019.
O Escritório Conjunto do Programa, que supervisiona o projeto, discorda da avaliação do GAO, argumentando que ele não divide o F-35 por variante e não leva em conta o que eles afirmam ser uma “curva de aprendizagem” (learning curve) que levaria os preços para baixo ao longo do tempo. Dizem que um número mais realista é de 120 milhões dólares em média por exemplar, em cada um dos lotes de produção. Os críticos, como Winslow Wheeler, do Projeto de Supervisão do Governo e funcionário do GAO de longa data, argumentam o contrário: “O verdadeiro custo do avião, quando você deixar de lado todas as besteiras, é 219 milhões dólares ou mais por aeronave, e esse número tende a subir”.
TERCEIRA PARTE DO TEXTO AMANHÃ