Espionagem: o Brasil não aprende nunca?
Durante o processo de escolha da empresa responsável pelo programa Sivam, o Brasil foi alvo de espionagem dos serviços de inteligência dos EUA e de ‘arapongas’ nacionais. Quase 20 anos depois o governo continua vulnerável
Estes norte-americanos vinham sendo acompanhados pela Direção de Vigilância do Território (DST, em francês) desde 1992. Dois deles já haviam deixado a França, e dos cinco restantes, quatro eram diplomatas da embaixada norte-americana em Paris.
Obviamente, o governo dos EUA respondeu dizendo que a acusação era “injustificada” e até mesmo a França tentou minimizar o caso (embora houvesse desconfiança de que a matéria tenha vazado propositalmente de dentro do governo), mesmo porque as relações entre os dois países vão além de um evento como este.
A imprensa francesa também acusou um brasileiro de ser colaborador da CIA. Segundo os franceses, ele teria ajudado uma espiã norte-americana a se aproximar de funcionários do governo francês. Mas o envolvimento do Brasil nesta trama internacional, típica de filmes hollywoodianos, não estava restrito a esta passagem. Ao contrário, tudo indicava que o país era o alvo principal da espionagem.
Amazônia desprotegida
Em 1988 era inaugurado o Terceiro Centro Integrado de Defesa Aérea e Controle de Tráfego Aéreo (CINDACTA III), responsável pelo monitoramento do tráfego aéreo na região Região Nordeste. Era natural que o passo seguinte fosse a implantação de um sistema de gerenciamento e controle do espaço aéreo na Região Amazônica.
Os estudos para a implantação do CINDACTA IV acabaram evoluindo para um programa muito mais amplo e complexo. De tão abrangente, este programa extrapolou os limites do então Ministério da Aeronáutica, sendo coordenado em conjunto com a Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência (SAE), com auxílio do Ministério da Justiça. A SAE foi criada durante o governo do presidente Fernando Collor de Melo, absorvendo parte das atribuições do extinto Serviço Nacional de Informações (SNI), sendo na verdade a agência de inteligência brasileira. Aliás, “Inteligência” e ‘espionagem” foram duas palavras que acompanharam todo o programa.
Denominado SIVAM (Sistema de Vigilância da Amazônia), o programa previa não só o gerenciamento e controle do espaço aéreo, mas também o controle e o monitoramento ambiental da região, além da aquisição de aeronaves de vigilância aérea e policiamento do espaço aéreo. O esboço do programa foi inicialmente apresentado para o presidente Collor em setembro de 1990. Posteriormente, em agosto de 1993, o projeto foi aprovado pelo Conselho de Defesa Nacional (CDN), ainda no governo de Itamar Franco.
Dos onze consórcios/empresas que se interessaram inicialmente, o programa afunilou-se para quatro consórcios internacionais. Eles eram liderados pelas empresas Dasa (Alemanha); Unisys do Brasil; Raytheon (Estados Unidos) e Thomson (França). Eles teriam que fornecer os equipamentos e implantar o projeto. A integração do sistema seria feita pela Esca, empresa brasileira escolhida em dezembro de 1993. Ela também seria responsável pela absorção de tecnologia.
Em junho de 1994 os consórcios liderados pela Dasa e pela Unysis foram desclassificados no exame das propostas técnicas. Sendo assim, o lobby das duas restantes intensificou-se. O secretário de Comércio dos EUA, Ron Brown, se reuniu com parlamentares e integrantes do governo brasileiro, defendendo a Raytheon. Na mesma semana o ministro da Indústria e Comércio da França, Gerard Longuet, veio ao Brasil para fazer lobby para o consórcio francês Thomson-Alcatel.
Muitos acreditavam que o consórcio francês era o favorito na disputa, pois a instalação dos outros três centros de controle de tráfego aéreo (CINDACTA I, II e III) foram implantados com equipamentos da Thomson. Mas desta vez os norte-americanos entraram para ganhar.
Ainda antes do anúncio do consorcio vencedor, o presidente dos EUA, Bill Clinton, encaminhou uma carta para o presidente Itamar Franco sobre a importância do negócio para os dois países e a recomendação da empresa Raytheon. No dia 18 e julho de 1994 a Raytheon foi declarada vencedora da licitação. Meses depois, Itamar lembraria Clinton de que o avião da Embraer, o Super Tucano, era um dos concorrentes do programa JPATS que escolheria o novo avião de treinamento das Forças Armadas dos EUA.
Após a definição do vencedor, o grande passo seguinte era a aprovação do empréstimo internacional pelo Senado Federal. O relator do projeto de lei que autorizaria o governo brasileiro a tomar empréstimos era o senador Gilberto Miranda (PMDB-AM), presidente da Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado. O projeto foi aprovado na noite do dia 21 de dezembro de 1994 com baixo quórum e sem muito alarde. No ano seguinte, o senador Miranda não se mostrou tão favorável ao Sivam.
O projeto foi orçado inicialmente em US$ 1,4 bilhão. Com os encargos financeiros, o valor subiu para US$1,7 bilhão, mas somando-se os juros previstos nos contratos, o total passou para US$ 2,8 bilhões. Um empréstimo internacional foi contratado para cobrir todo o custo do projeto e o seu pagamento seria feito ao longo de 18 anos. A maior parte do empréstimo ficou por conta do banco norte-americano Eximbank. As empresas Raytheon e a sueca EKN completaram o total do montante financiado.
Espionagem
A matéria do periódico nova-iorquino, publicada em um domingo, mostrava como o governo dos Estados Unidos passou a se envolver mais com as companhias privadas do país para conquistar mercados no exterior. Durante a administração Clinton, o Departamento de Comércio passou a receber atenção especial e recebeu apoio de outros órgãos da administração federal, principalmente dos serviços de inteligência.
No período imediatamente após o fim da Guerra Fria, a Central de Inteligência (CIA) teve que buscar novas justificativas para o seu polpudo orçamento. A administração Clinton entendeu que o futuro da CIA estava na “inteligência econômica”.
Antes de deixar o comando da CIA em janeiro de 1995, James Woolsey deu maiores detalhes da nova missão da agência ao Senado. Segundo ele, a CIA não praticava espionagem econômica, mas que monitorava práticas desleais executadas por outros países para conquistar contratos no exterior. Todas estas informações eram compartilhadas com a Casa Branca e com o Departamento de Comércio.
A atenção estava voltada para mercados emergentes como Índia, China, Brasil e Indonésia. O Departamento de Comércio selecionava os alvos prioritários (projetos de grande vulto) e a CIA monitorava os concorrentes das empresas norte-americanas onde quer que elas estivessem.
O caso divulgado pelo jornal Lê Monde, narrado no início deste texto, aconteceu dois dias depois da publicação da matéria do The New York Times. No final de fevereiro de 1995 o caso ganhou destaque na imprensa brasileira e duas comissões no Senado decidiram pedir esclarecimentos aos ministros responsáveis pelo programa, brigadeiro Mauro Gandra, da Aeronáutica e Ronaldo Sardenbereg da SAE.
Problemas com a Esca
A assinatura do contrato com a Raytheon, que deveria ocorrer em março de 1995, acabou sendo postergada sem data definida. O problema não era apenas as revelações da matéria do The New York Times e suas consequências no país. De onde menos se esperava, surgiu um outro empecilho. A Esca, empresa selecionada pelo governo para integrar o sistema e absorver tecnologia, foi tragada pela burocracia. Ela não havia conseguido a emissão da Certidão Negativa de Débito junto à Previdência e sem este documento, ela não poderia assinar contratos com o governo. Geraram-se assim suspeitas de que ela teria fraudado pagamentos à Previdência.Além disso, a empresa foi acusada de assessorar Raytheon antes mesmo da norte-americana ser escolhida.
No dia 27 de maio o presidente Fernando Henrique Cardoso reuniu o CDN e decidiu afastar a Esca do Sivan. No seu lugar a gerência do programa passou temporariamente para o Ministério da Aeronáutica, que teria 120 dias para escolher uma nova empresa. E assim o contrato com a Raytheon pôde finalmente ser assinado.
Menos de um mês depois da assinatura do governo brasileiro com a Raytheon, a Embraer (em associação com a Northrop) seria derrotada pelo consórcio Beechcraft/Pilatus, uma divisão da própria Raytheon, na concorrência JPATS. O anúncio da vitória da Beechcraft foi feito no dia 22 de junho. Não havia ligação direta entre o JPATS e o Sivam, mas seria muito conveniente em termos geopolíticos.
A derrota na concorrência da USAF agravou a crise da empresa brasileira, que havia sido privatizada seis meses antes. No entanto, o mercado de aviação regional dos EUA seria o responsável pela ressurreição da Embraer anos depois. Com um produto adequado e competitivo, a Embraer pôde se reerguer através das centenas de vendas de jatos ERJ-145 para diversas companhias norte-americanas.
Parceiro Nacional
Em 1993 a Raytheon comprou a divisão de jatos executivos da British Aerospace e fundindo-a com a sua subsidiária Beechcraft. Assim, em 1994 nasceu a Raytheon Aircraft. Foi também naquele ano que a Raytheon se aproximou do empresário mineiro José Afonso Assumpção, dono da empresa Líder Táxi Aéreo.
A Líder, então dona de uma frota de treze LearJet e representante desta marca de jatos por muitos anos no Brasil, firmou um contrato com a Raytheon e passou a representar também os modelos Beechcraft e Hawker no país. A empresa esperava voltar a crescer após três anos seguidos de prejuízos. No dia 3 de janeiro de 1995, menos de dez dias depois da aprovação do projeto de lei que viabilizava o empréstimo para o programa Sivam no Senado, o próprio Assumpção anunciou a associação com a empresa americana.
Mas o interesse da empresa não estava restrito ao mercado civil. Segundo reportagens da imprensa da época, Assumpção circulava entre as autoridades de Brasília tentando “fazer andar” o projeto Sivam e fechar um negócio para a renovação de jatos executivos do GTE (Grupo de Transporte Especial). Na verdade a FAB já havia adquirido seis jatos Gates Learjet que tinham sido negociados pelo empresário mineiro.
Assumpção passaria despercebido como mais um lobista que atuava nos bastidores, não fosse um escândalo de escuta telefônica que atingiu o chefe do cerimonial do Palácio do Planalto, o embaixador Júlio César Gomes dos Santos. As escutas telefônicas foram feitas Polícia Federal (PF) em função de uma denúncia anônima sobre tráfico de drogas, mas o que se viu foram indícios de tráfico de influência. Nos diálogos entre Santos e Assumpção mostraram um interesse extraordinário do embaixador pelo programa Sivam, algo que não cabe a uma pessoa que exerce a função de chefe de cerimonial. Em um trecho do diálogo, Santos criticou o senador Gilberto Miranda por dificultar a aprovação do projeto. E então o embaixador perguntou a Assumpção: “você já pagou o cara?”.
Em relação ao senador Gilberto Miranda, que se mostrou favorável ao projeto Sivam em 1994, ele adotou atitude ambígua um ano depois. Informou que não tinha tanta pressa assim para autorizar a implantação do Sivam e que decidiria o caso somente após conhecer os sistemas de vigilância da Rússia, Ucrânia e Austrália e analisar 500 quilos de documentos secretos enviados pela Aeronáutica (ao longo do ano de 1995 ela já havia ido aos Estados Unidos visitar o Pentágono, a Base Aérea de Virgínia e a fábrica Raytheon).
A escuta telefônica de um assessor tão próximo do presidente da República, em função de uma mera denúncia anônima de tráfego de drogas foi motivo de muito alarde no governo. Em função disso, a Presidência da República pediu a implantação de um sistema de telefonia digital direta entre os palácios (do Planalto, Alvorada e Jaburu) e a Granja do Torto. O sistema seria baseado em tecnologia de criptografia. Mesmo que os telefones fossem grampeados, seria necessário um especialista para decodificar as conversas. Passados quase 20 anos, as lições fornecidas pelo caso em relação à “arapongagem” nacional e internacional parecem que foram esquecidas e pouca ou nenhuma providência foi tomada. A história ensina. O Brasil não aprende.
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