Pilotos de Drones
Toda vez que leio uma matéria sobre drones, fico imaginando que grandes mudanças terão que ser feitas no que, em mais de dois milênios, se entendeu como guerra
Cesar Augusto Araripe Lacerda (*)
“Um relatório elaborado por duas universidades americanas, a Stanford Law School e a New York University School of Law com o título “A vida sob os drones”, afirma que a grande maioria das milhares de pessoas mortas nos ataques, iniciados em junho de 2004, nas zonas tribais paquistanesas eram combatentes islamitas. No entanto, o relatório insiste nas graves consequências sociais e psicológicas dos bombardeios na população: os drones sobrevoam as localidades do noroeste 24 horas por dia, atacam veículos, casas e espaços públicos sem aviso prévio. Sua presença aterroriza os homens, mulheres e crianças, criando um trauma psicológico. No momento existem mais de 500 drones norte americanos no Afeganistão, Paquistão e Iraque.”
Toda vez que leio uma matéria sobre drones, fico imaginando que grandes mudanças terão que ser feitas no que, em mais de dois milênios, se entendeu como guerra. Como exemplo, vou me fixar nas cenas que aparecem em um filme muito divulgado na internet, onde uma moça de óculos, pertencente à USAF, em um local protegido no centro dos Estados Unidos, pilota remotamente uma aeronave que voa em outro continente, com a finalidade de bombardear uma área previamente especificada.
Como terá sido o dia dela?
Acordou, penteou o cabelo, fez uma ligeira maquiagem, preparou café, ovos, torradas e bacon para o marido e os filhos, levou um deles no ponto do ônibus, fez as recomendações de sempre, enquanto o pai deixava o mais novo na escola. Pegou o casaco, ligou o carro que, por falta de tempo, ainda não levara para trocar dois pneus, entrou em um tráfego pesado mas organizado e chegou ao trabalho. Marcou a hora de entrada digitalmente, perguntou a um colega como estava passando seu filho que ontem tivera febre, abriu a bolsa, tirou um chicletes e ligou o computador.
Na página destinada a missões encontrou a sua para aquele dia: destruir um esconderijo talibã cujas coordenadas codificadas apareciam na tela. Consultou as condições meteorológicas, fez um cheque geral no drone, observou o combustível, testou o armamento e as câmeras de televisão. Acessou seu comandante imediato, leu na tela algumas recomendações importantes, pediu permissão para iniciar a missão.
Acessou a torre de controle, ligou a aeronave, fez os cheques regularmente previstos antes da decolagem, soltou os freios, iniciou o taxi, chegou à pista indicada, acelerou, acionou o manche e já estava no ar. O voo seria direto sobre o alvo, mas um pouquinho longo. Fez os devidos registros no painel, avisou ao comando e ligou o piloto automático. Com algum tempo sobrando, foi até o banheiro, lavou as mãos, retocou o cabelo e a maquiagem.
Tirou o I-phone do bolso, ligou para a mãe, conversou sobre as notas baixas do filho mais velho na escola, pediu uma receita de bolo de chocolate, o que fizera ontem não tinha ficado bom, ninguém quis comer. A mãe poderia enviar a receita pelo I-pad, por um notebook ou qualquer aparelho moderno, mas acontece que ela não sabia nem ligar um micro ondas. Paciência, a idade às vezes é um problema. Enviou um e-mail para a melhor amiga confirmando sua presença e a do marido na festa à noite.
Sabia que a boa educação mandava que tivesse feito a confirmação até a véspera pelo menos, mas com este negócio de combater todo dia não sobrava tempo para nada. Tudo bem, eram amigas de colégio e seria certamente desculpada. Olhou o relógio, só seria possível um rápido café na máquina e teria que retomar o voo. Sentada novamente em sua cadeira, colocou o copo de café sobre a mesa, ajustou os fones e assumiu o comando da aeronave. Olhou os instrumentos em especial o GPS, estava chegando perto.
Na tela aparecia um lugarejo perdido no meio do nada, nenhuma árvore, casas pobres sem jardim, pouquíssimos automóveis, um caminhão, dois cavalos soltos pastando na única mancha verde. Um aviso sonoro e um círculo sobre uma das casas mostrou que o alvo estava identificado. Informou ao comando que se encontrava em posição e iria abrir fogo. Um segundo após ouvir o OK fez dois disparos: o primeiro atingiu o alvo em cheio, o outro acertou o muro. As explosões que se sucederam mostraram que devia haver muitos explosivos estocados e entre as pessoas que saíram correndo uma tentava apagar o fogo em suas roupas. Avisou ao comando sobre o êxito da missão, recebeu os parabéns e a ordem de voltar à base. Voo tranquilo, a paisagem feia e monótona de sempre.
Ajudada pelo piloto automático, leu as notícias do dia no jornal local “outro desastre de automóveis perto da minha casa? Não é possível, isto é um perigo, preciso alertar as crianças”, fez algumas palavras cruzadas e, depois, pousou sem problemas e levou a aeronave até o hangar. Começou a digitar o relatório e só parou no item que perguntava se havia vítimas. Lembrou que um homem estava com a roupa em chamas, mas os outros eram 3 ou 4 ? Colocou 4, se houvesse problema requisitaria o vídeo gravado, o comandante não era tão exigente assim.
Desligou o sistema, pegou o casaco, marcou a hora de saída e caminhou na direção do carro pensando que talvez fosse melhor trocar os quatro pneus. Outro carro não era possível, estavam tendo problemas com a hipoteca da casa. Naquela hora o tráfego não estava tão intenso, daria para passar no supermercado. Pegou a lista de compras, tirou alguns produtos de limpeza da prateleira e duas caixas de suco de laranja.
Examinou o rótulo, viu que nenhum deles viera da América Latina, os preferidos do marido. “Uma bobagem, laranja é tudo igual. E depois, se existe diferença, é claro que as laranjas da Califórnia são melhores que as laranjas cucarachas”. A casa estava vazia, nem marido, nem filhos. Deu tempo para um banho quente, “quando sobrar algum dinheirinho vou comprar uma banheira de hidromassagem”.
Enrolou o cabelo, escolheu o vestido e os sapatos para a festa e foi para a cozinha preparar o jantar das crianças. Estava divagando sobre quem iria encontrar na casa da amiga, quando o marido chegou. Desfez o laço da gravata, abriu a camisa e colocou a pesada pasta sobre a mesa (“Para que ele anda com tantos papéis na pasta ? Não é o dono do escritório de Contabilidade, é só o subgerente, não precisa trazer trabalho para casa …”). Como era seu hábito, só aí ele fez um breve cumprimento para ela e repetiu a pergunta de sempre: “Como foi o seu dia?”. E ela, também como sempre, respondeu: “Tudo normal, sem novidades”.
(*) Coronel de Artilharia do Exército Brasileiro, engenheiro civil, historiador e professor.
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