Depois de receber R$ 391,5 milhões da União e conviver com sucessivos atrasos, projeto comercial para lançar satélites a partir do Brasil corre risco de não se viabilizar. Governo busca saída “estratégica””

 

Com sucessivos adiamentos, mercado se fecha a programa de lançamento comercial de satélites

Roberto Maltchik

Aventura espacial

 

Depois de irrigar com R$ 391,5 milhões ao longo dos últimos seis anos o mais audacioso projeto de lançamento comercial de satélites em solo brasileiro, o governo federal concluiu que é elevado o risco de o negócio simplesmente não se viabilizar e, agora, busca uma saída “estratégica” para justificar o investimento. Além do descompasso orçamentário, a ausência de um acordo tecnológico com os Estados Unidos, a inexistência de data de lançamento e a administração errática da Alcântara Cyclone Space (ACS) no governo Lula levaram o empreendimento – cujo investimento mínimo, para cada país, alcançará R$ 500 milhões – a um ponto crítico, que obrigou o Palácio do Planalto a revisar silenciosamente seu objetivo.

Tratado assinado entre Brasil e Ucrânia, em 2006, previa objetivamente que a ACS seria criada para que o Brasil entrasse no restrito e altamente qualificado mercado internacional de lançamento de satélites, que renderia aos dois países US$ 50 milhões, por lançamento. Seis anos depois, o Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) informa que a “transferência de tecnologia”, integrada à construção do Centro Espacial de Alcântara (MA), em área cedida pela Aeronáutica, “por si só, justifica o investimento”. Ocorre que o tratado que criou a binacional, aprovado pelos Parlamentos ucraniano e brasileiro, não prevê transferência tecnológica.

“A Alcântara Cyclone Space tem por missão o desenvolvimento do Sítio de Lançamento do veículo lançador Cyclone-4 no Centro de Lançamento de Alcântara e a execução, a partir do mesmo sítio, de lançamentos comerciais, bem como aqueles de interesse da República Federativa do Brasil ou da Ucrânia”, diz, textualmente, o enunciado da “missão” da Alcântara Cyclone Space, disponível no site da empresa. Funcionários da empresa e técnicos do MCTI asseguram: não há transferência de tecnologia na fabricação do equipamento.

Trunfo do brasil

O trunfo do Brasil para desenvolver o programa de lançadores é a localização geográfica de Alcântara, encravada na Linha do Equador. Isso significa não só economia de propelente (combustível) como também mais capacidade para transportar cargas úteis. Porém, lançar comercialmente o foguete Cyclone-4, em construção na cidade ucraniana de Dnipropetrovsk, envolve muito mais que ter um sítio pronto e um foguete construído, o que ainda não existe. Se antes a meta era fazer o primeiro lançamento em 2010, agora passou para 2014.

Entre analistas do mercado espacial consultados pelo GLOBO ao longo de dezembro, o uso comercial do Cyclone-4 não passa de um “projeto”, repleto de incertezas nos campos técnico e geopolítico. E – em tais condições – os grandes clientes deste multibilionário nicho não apostam um centavo.

No campo geopolítico, a ACS não está autorizada a lançar sequer um artefato ao espaço com componente fabricado nos Estados Unidos, pela ausência de um acordo de salvaguarda tecnológica entre Brasil e EUA, barrado no Congresso em 2002, principalmente por força do PT, à época o principal partido de oposição ao governo Fernando Henrique. E cerca de 90% de todos os satélites em operação, hoje, têm componentes americanos.

Até o fim do governo George W. Bush (2001-2009), a doutrina da Casa Branca era não permitir o acordo. Historicamente, os EUA apresentam profundas restrições ao programa de lançadores do Brasil, uma vez que seus componentes têm uso duplo: civil e militar, ou seja, servem a foguetes e mísseis. Paradoxalmente, os EUA reconhecem Alcântara como excelente local para lançamentos, inclusive, de seus próprios foguetes. Mas Alcântara convive com um impasse que envolve comunidades quilombolas remanescentes que vivem na região, e que, ao longo da década passada, literalmente expulsaram a ACS da área previamente reservada à instalação de inúmeros sítios de lançamento: ou seja, falta área disponível para transformar Alcântara num centro internacional de lançamento comercial de satélites.

Neste momento, o Itamaraty negocia o acordo, em caráter sigiloso, com o governo Obama. O MCTI classifica o assunto como “de grande relevância”. O Ministério de Relações Exteriores (MRE), a ACS e a embaixada dos EUA não comentam o assunto especificamente. Até agora, não há solução à vista.

Precisamos muito disso (o acordo com os EUA) para tornar comercial o sítio de lançamento de Alcântara. O acordo é super importante. Esse assunto é objeto de discussão no Itamaraty, que o analisa com muito cuidado – afirmou ao GLOBO o presidente da Agência Espacial Brasileira, José Raimundo Braga Coelho, que nega a mudança de rumo no projeto Cyclone-4, apesar de inúmeras confirmações no sentido contrário: – O objetivo não mudou. O objetivo é comercial e estratégico.

Em abril do ano passado, de acordo com a embaixada americana, Brasil e Estados Unidos realizaram um debate “positivo” sobre segurança espacial. Em dezembro, o Ministério da Defesa e o Departamento de Defesa dos Estados Unidos fizeram nova rodada de negociações, um mês depois de uma delegação dos Estados Unidos visitar Alcântara.

Oficialmente, a ACS não quis se pronunciar. Porém, funcionários da empresa pública binacional reconheceram ao GLOBO que, sem acordo de salvaguardas ou data de lançamento estabelecida e apresentada aos operadores do mercado, não há condições de atrair clientela, que atualmente contrata lançadores nos EUA, na Europa e na Ásia. Ou seja, a cada dia que passa as opções de mercado do sistema ucraniano-brasileiro ficam mais restritas. Restrições que se ampliam considerando a desconfiança do mercado quanto às limitações ucranianas – país descapitalizado depois da crise financeira de 2008 – para o desenvolvimento de novas tecnologias de segurança de voo.

Entraves administrativos

Um analista do mercado, sob a condição do anonimato, afirma que os grandes fornecedores de Europa e Estados Unidos, eventuais concorrentes da ACS, recebem suporte de suas nações para vender lançamentos para clientes desses países, os principais do mercado mundial. A essas nações, portanto, não interessa a presença de um novo concorrente, em condições geográficas vantajosas.

O governo brasileiro também convive com entraves administrativos para “adaptar os projetos inéditos e complexos em desenvolvimento na Ucrânia às normas construtivas brasileiras”, informa o Ministério da Ciência e Tecnologia.

O que há hoje é um empreendimento em franca expansão no município de Alcântara, com maquinário pesado ucraniano desembarcando no porto da cidade. Também há cooperação técnica Brasil-Ucrânia na implementação de itens no centro de lançamento, comprados na Ucrânia com dinheiro brasileiro. Há, sim, chance de o Cyclone-4 só mandar ao espaço satélites brasileiros e ucranianos. Mas nem o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que opera o programa de satélites do Brasil, tem planos para contratar o foguete, que oferece mais capacidade do que a exigida pelos projetos de satélites desenvolvidos no país.

FONTE: O Globo

NOTA DO EDITOR: o Brasil é o único país do mundo que consegue sabotar a si mesmo.

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