Entrevista com o ex-diretor do CENIPA, major-brigadeiro Jorge Kersul Filho

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A equipe da revista Forças de Defesa entrevistou o aviador e ex-chefe do Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (CENIPA), major-brigadeiro do ar Jorge Kersul Filho, durante a cerimônia de inauguração da Academia de Ciências Aeronáuticas do Centro Tecnológico Positivo, na última quarta-feira (24) em Curitiba. O brigadeiro comentou sobre a segurança aérea às vésperas da Copa do Mundo e dos Jogos Olímpicos no Brasil, a separação das investigações criminais e técnicas de acidentes aeronáuticos, e a proposta de criar uma entidade civil para realizar esse trabalho no lugar da FAB.

Nos próximos anos, teremos a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos no Brasil. Como esses eventos de grande porte impactam o espaço aéreo do país? O que é preciso observar em termos de infraestrutura e segurança?

O Estado já está tomando algumas providências, por exemplo o fechamento de lixões, e dar mais atenção ao perigo representado por pássaros. Há até mesmo uma lei que dá poder de multa para que se evite atividades que atraiam aves para perto dos aeródromos (Lei 12.725, de 16 de outubro de 2012). Haverá um crescimento considerável na parte aérea do país, e mais exposição aumenta o risco de novas ocorrências.

Vemos também a iniciativa do governo de permitir o uso de aeroportos particulares – se um proprietário ou uma cidade tem essa estrutura, ela pode ser aberta para operar, porque o maior problema desses eventos de grande porte não é a aviação regular. Outros países que passaram por essa situação tiveram que se preocupar com os aviões particulares, pequenos. E percebemos, em vários locais do Brasil, movimentações para operar esse tipo de aviação – iniciativas de agentes particulares em São Paulo, na região sul há pessoas se mobilizando em associações e construíndo pistas também. Então essas novas instalações poderão absorver esse aumento momentâneo do tráfego aéreo. Afinal, é difícil aplicar grandes recursos públicos para algo pontual, em um país com recursos limitados.

Eu diria que o maior problema que teríamos não é relacionado à aviação, mas à mobilidade urbana. As pessoas chegarão tranquilamente aos aeroportos, nós temos condições de absorver essa demanda, mas o problema nos grandes centros é a locomoção quando você já está na cidade – falta metrô, ônibus de qualidade, etc. Um país desenvolvido é onde os ricos usam transporte público, mas no Brasil todos querem ter seu carro porque não temos um sistema de transporte que atenda às nossas necessidades. Mas quanto a isso também há medidas que serão tomadas para facilitar a locomoção dos estrangeiros durante esse período. É uma questão de olharmos de forma positiva. Se nós quisermos que esses eventos no Brasil deem certo, há como darem certo.

O Plenário aprovou no último dia 16 um projeto de lei (PL 2453/07) que separa a investigação criminal da investigação técnica e preventiva de acidentes aéreos, além de delimitar quais dados podem ser usados em processos judiciais. Como o senhor acha que essa distinção pode contribuir para o andamento da investigação e prevenção de acidentes?

Essa lei surgiu na época da CPI do Caos Aéreo (2007), foi aprovada na Câmara e agora vai para o Senado. Ao contrário do que muitos pensam, não se trata de tornar a investigação de acidentes aeronáuticos algo confidencial e limitado, pois não teria coerência alguma. A investigação de acidentes precisa ser de conhecimento universal.

O que foi pedido, o que é a nossa luta e está nesse projeto de lei, é que os dados não sejam usados como provas em julgamentos, com fins punitivos, porque isso distorce completamente a finalidade da investigação e prejudica o trabalho em futuras ocorrências. Por exemplo, um piloto se envolve em um acidente e, conhecendo a filosofia do processo investigativo, comenta o que fez, o que deixou de fazer, se o equipamento não respondeu de acordo – e de repente essas informações são usadas contra ele, sendo que é previsto na Constituição que ninguém é obrigado a produzir provas contra si mesmo. A área jurídica deve usar a investigação policial. As polícias brasileiras têm condições de conduzir buscas e apresentar provas para serem usadas em julgamentos. As investigações do CENIPA devem ser usadas apenas para evitar novos desastres.

O que aconteceu quando nossos dados foram usados para fins que nós não gostaríamos foi a retração por parte de pilotos, comissários e comandantes, que pensavam: “eu vou falar com esses caras para quê, se eles vão entregar tudo para a polícia, como já fizeram?”. E esse projeto de lei permitirá que voltemos ao status anterior, onde havia confiança entre as partes, e as pessoas falavam sabendo que não estavam produzindo nada contra si mesmas. A investigação de acidentes aeronáuticos é algo muito científico e temos um conhecimento razoável. Quando contamos com a participação voluntária dos envolvidos em uma ocorrência, o resultado é mais fácil, rápido e mais rico.

Se conseguirmos a aprovação dessa lei, estaremos na vanguarda em relação ao resto do mundo. E, novamente, eu gostaria de afirmar: ela não pretende que os resultados das investigações sejam inacessíveis. Pelo contrário, eles devem ser divulgados.

Em artigo publicado no Poder Aéreo, o tenente-coronel da FAB Gustavo Adolfo Franco Ferreira aponta que, atualmente, o sistema de investigação de acidentes aeronáuticos  tem como objetivo “a mitigação das consequências para os envolvidos”. O que o senhor pensa sobre essa observação?

O que tem acontecido é que as investigações demoram mais, mas os resultados a que chegam são os mesmos. Quanto mais informações houver, mais condições teremos de chegar à verdade. Mas quando as fontes se retraem, é preciso procurar, caçar mais, o que faz com que o processo demore.

A polícia pode ter acesso aos dados obtidos, mas não pode usar como provas a interpretação do investigador do acidente, nem as peças que ele achou importantes para o seu trabalho. Que as instituições conduzam suas buscas independentes e paralelas, cada uma com uma finalidade. A investigação policial é que deve estabelecer responsáveis e culpados – é um serviço que o Estado precisa ter.

O senhor defende que a apuração de acidentes aeronáuticos não deveria ser responsabilidade da Força Aérea. O senhor pode resumir o porquê desse posicionamento? E como esse trabalho deveria ser estruturado, na sua opinião?

Houve uma época em que tudo relacionado à aviação estava ligado ao então Ministério da Aeronáutica. Em algum momento o Estado decidiu retirar algumas atribuições desse Ministério, e em seguida criou-se o Ministério da Defesa e o Comando da Aeronáutica. Com isso, uma série de instituições passaram para o novo Ministério, e hoje, ficaram na Força Aérea dois resquícios –  a investigação de acidentes aeronáuticos e o controle de tráfego aéreo. A investigação de acidentes requer muita independência e honestidade, porque interfere na existência de diversos setores. E a FAB ficou com esse encargo porque nenhuma outra instituição o quis, porque é um trabalho que não traz nenhum retorno financeiro, e só recebe atenção em momentos tristes.

Vou dizer algo que pode parecer petulante: acho difícil que alguém consiga fazer um trabalho melhor que o da Força Aérea, porque nós temos independência, não somos ligados a partidos ou empresas, então temos essa tranquilidade para fazer uma investigação honesta e dentro de padrões internacionais. Mas esse trabalho sangra um pouco dos recursos financeiros e pessoais da FAB, também não traz nenhum benefício além do conhecimento, que por si só é impagável.

Sou favorável à criação de um órgão nacional, como há em outros países, que seja responsável pela investigação de ocorrências na aviação civil. Nós fizemos essa sugestão e, até onde eu sei, a proposta chegou ao Ministério da Defesa. Na época, propusemos que essa instituição fosse subordinada ao próprio Ministério, assim como a Infraero e a Anac. Mas hoje eu diria que esse órgão investigativo deveria estar acima dessas três entidades.

O senhor acha possível criar no Brasil esse órgão independente para conduzir as investigações de acidentes na aviação civil?

Sim. Acho que podemos chegar lá. Quando fizemos essa proposta, chegaram a dizer que estávamos procurando emprego para o pessoal da reserva, mas o fato é que os recursos humanos que temos hoje são aqueles formados pela Força Aérea, e no futuro esses profissionais darão espaço aos de formação civil. Na época sugerimos que, mais adiante, esse órgão tratasse também de acidentes terrestres, marítimos e em dutos, e que então estivesse ligado ao Congresso Nacional, especificamente ao Senado, mais ou menos como o Tribunal de Contas da União.

Então, eu defendo a criação de um novo órgão investigativo. A Força Aérea tem que cuidar da Força Aérea.

FOTO: Renaclo Tekutli.

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