Mirage IIIS: precedente suíço na escolha de um ‘caça que só existe no papel’

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“No início da década de 1960, a Saab ofereceu o J35F Draken para a Suíça, que acabou escolhendo o Mirage III – e então gastou uma fortuna equipando o Mirage com um radar e sistema de controle de fogo da Hughes, mísseis Falcon e uma capacidade de decolagem em pistas curtas, tudo que já era padrão no Draken. A vingança é um prato que deve ser servido frio. ”

Bill Sweetman – Aviation Week

(adendo a uma reportagem sobre a escolha do Gripen pela Suíça, em novembro de 2011)

Guilherme Poggio e Fernando “Nunão” De Martini

Em 30 de novembro de 2011, o mesmo dia em que a Suíça anunciou a escolha do Gripen como seu novo caça, numa concorrência em que o caça sueco disputava com o francês Rafale e o Typhoon do consórcio Eurofighter, a Dassault francesa divulgou uma nota comentando a escolha. Nela, foi feita uma crítica ao caça selecionado, dizendo:  “O Gripen ‘adaptado à Suíça’ existe apenas no papel. Seus riscos de desenvolvimento e produção aumentam significativamente os esforços financeiros requeridos pelas Autoridades Suíças para cumprir com o programa de aviões de caça do país.” Naquele mesmo dia, saía matéria no site Aviation Week assinada pelo especialista em aviação Bill Sweetman, que terminava com o parágrafo selecionado acima (e as palavras não eram “doces” como o nome do autor).

Sweetman fazia referência ao “caso Mirage” da década de 1960 – quando a Suíça selecionou o caça Mirage III, da Dassault, decidindo que ele teria uma configuração que também existia “apenas no papel”. Desde que vimos essas palavras de Sweetman, no final do ano passado, tivemos vontade de pesquisar mais sobre o assunto e trazer para os leitores do Poder Aéreo uma matéria contando essa história.

É sempre bom lembrar que a história é algo que não se repete, apesar de frequentemente parecer que coincidências acontecem. Cada época tem seu contexto, e as pessoas buscam no passado as referências para suas próximas atitudes, porém isso sempre parte de necessidades que existem apenas no agora, no momento em que vivem. Nos últimos meses, a imprensa suíça vem fazendo referências ao “caso Mirage” quando se refere à atual escolha de caças, como se a história estivesse se repetindo. Mas será que o contexto não mudou nesse meio tempo? Sweetman falou na vingança como um prato frio, mas vale a pena analisar com frieza os fatos quentes daquela época. Vamos à história.

O “F-X” suíço da década de 1960

Após decidir pela escolha do Hawker Hunter em 1958, a Força Aérea Suíça passou a estudar a aquisição de um caça interceptador supersônico, uma vez que o caça britânico não tinha estas características. Dentre as opções existentes no mercado no início da década de 1960, a Suíça resolveu excluir caças como o English Electric Lightning, o Fiat G.91, o Grumman F-11F-1F e o Lockheed F-104 e passou a avaliar somente duas opções: o Dassault Mirage IIIC e o Saab 35H Draken.

Para os suíços, o Mirage era um sistema de armas muito mais evoluído em relação ao seu concorrente, além de vencer o Draken em várias modalidades como velocidade máxima, altitude, alcance e capacidade de ataque ao solo.

O Mirage perdia em alguns quesitos como a necessidade de pistas mais longas para a decolagem (em torno de 35% a mais que o Draken) e razão inicial de ascensão na maioria das configurações, mas estas deficiências poderiam ser corrigidas com o emprego de RATO (Rocket Assisted Take-Off) e outras eventuais alterações no projeto.

No dia 28 de dezembro de 1960 o Conselho Federal suíço decidiu comprar 100 caças Mirage III. Deve-se destacar que nessa época o avião ainda era um protótipo e sua entrada em operação na Força Aérea Francesa ocorreu somente no ano seguinte.

O contrato foi avaliado em 900 milhões de francos suíços. O valor incluía a aquisição de licença de fabricação e a produção local das aeronaves. Na época o valor do contrato foi considerado inferior ao do australiano para a compra de Mirages semelhantes. Pouco tempo depois a África do Sul também comprou a aeronave, e Israel cortejava o caça. Em 1962 o parlamento suíço aprovou a solicitação do governo daquele país.

Alterações complicadas

Para atender as exigências da Suíça, o Mirage deveria sofrer grandes alterações. A Suíça tinha interesse em alterar o radar de controle de fogo original do Mirage III (Cyrano II), tornar o caça mais adaptável a pousos e decolagens curtas (STOL) e dotá-lo de características que permitissem seu armazenamento e operação a partir de abrigos escavados em rocha.

Para atender aos requisitos, a célula do avião foi parcialmente reconstruída com reforços estruturais, tanto para absorver as vibrações provenientes do emprego do RATO (ver imagem ao lado) como para a movimentação por guindastes nas apertadas cavidades nas rochas. O trem de pouso também recebeu reforços no sentido de aproximá-lo de um avião STOL.

O radar de controle de fogo e navegação poderia ser o Airpass 2 da Ferranti ou o Taran Mk-1S da Hughes. Este último foi escolhido no início de 1962, para disparar uma versão do míssil GAR-11 Falcon produzido na Suécia. Essa versão era denominada HM-55 e equipava o Draken. Outros aviônicos de origem norte-americana também foram incorporados.

Ao final, quando o Mirage suíço “saiu do papel” acabou ficando mais parecido com o Draken, que havia sido preterido. A versão suíça do Mirage possuía certas características STOL, capacidade de armazenamento em cavidades nas montanhas e de emprego de mísseis Falcon. Mas, no caminho para chegar a esse resultado, o custo do programa acabou subindo descontroladamente.

Gastos descontrolados

Em abril de 1964, o descontrole financeiro do programa veio a público. O governo não teve outra saída se não ir ao parlamento e solicitar um aumento das verbas para a continuação do programa Mirage IIIS. Para que a encomenda total de 100 aeronaves fosse concluída, seriam necessários gastos da ordem de 600 milhões de francos suíços. Isso significava um incremento de 66% sobre o valor inicial de 900 milhões.

O caso tornou-se um escândalo nacional e ficou conhecido como o “caso Mirage”. No mês seguinte, em maio, uma comissão parlamentar de inquérito (CPI) foi formada com o propósito de acompanhar, investigar e avaliar os excessivos gastos do governo suíço para o programa. Deve-se destacar que tal atitude nunca tinha sido tomada antes na história moderna na democracia suíça.

Uma das primeiras medidas da comissão foi o corte no número de aeronaves para manter os custos sob controle. Por 133 votos a 57, a comissão decidiu reduzir a encomenda final de 100 caças para 57. Além do corte, o relatório da comissão afirmou que o governo agiu deliberadamente de forma negligente em relação ao controle de gastos do programa Mirage IIIS.

Mesmo para concluir a compra dos 57 caças, o parlamento teve que votar um aditivo de 200 milhões de francos. O estrago não ficou somente na elevação dos gastos e na redução do poderio aéreo da Suíça. Cerca de 300 grandes contratos com empresas suíças, francesas e norte-americanas, além de outros 4000 contratos com empresas minoritárias, tiveram que ser renegociados.

Ainda como reflexo das conclusões da CPI, o governo suíço removeu o coronel Etienne Primault das suas funções como comandante da Força Aérea Suíça, assim que foi divulgado o relatório final. Em dezembro de 1964, foi a vez do chefe do Estado –Maior do Exército Suíço, coronel Jakob Annasohn, deixar o cargo voluntariamente, porém moralmente abatido.

O chefe do Departamento de Defesa, Paul Chaudet (foto ao lado dentro de um Mirage), foi nominalmente citado no relatório por não ter informado o Parlamento sobre a evolução do programa. Embora ele tenha assumido os erros, boa parte das suas decisões foi tomada com base em dados técnicos passados pela sua equipe de assessores.

Ele permaneceu no governo, mas tornou-se uma figura politicamente fraca. A sombra do “caso Mirage” continuou a persegui-lo pelo resto do seu mandato e, em novembro de 1966, ele foi forçado a renunciar pelo seu próprio partido.

Aprendendo com a experiência do passado

Parece que a Suíça aprendeu com a própria história. Vejamos a atual concorrência de caças, que busca um substituto para a frota de F-5E/F e foi concluída em novembro passado com o anúncio da escolha do Gripen. A concorrência apresentou requisitos bastante definidos, considerando os custos de aquisição e operação e reduzindo ao máximo eventuais questionamentos.

A experiência com o programa Mirage IIIS mostrou que os objetivos técnicos e econômicos devem caminhar lado a lado e nem sempre o melhor caça é a melhor opção para o país. Vale lembrar que a família Mirage III, em sua configuração original francesa (ou com pequenas variações) foi um sucesso comercial pelo equilíbrio entre vantagens técnicas e econômicas. Equilíbrio que não foi atingido pela versão suíça.

Em função do descontrole do programa Mirage, que buscava sempre o melhor sem se preocupar com o controle dos recursos, a força como um todo acabou sendo prejudicada. Devido ao custo elevado, o número total de aeronaves ficou muito aquém do inicialmente previsto, reduzindo o poder de combate da Suíça.

Os gastos descontrolados foram contidos por um parlamento exigente e vigilante, assim como deve ser todo e qualquer Legislativo nas democracias. Mas os parlamentares agiram tardiamente. A culpa do fracasso do programa Mirage recaiu sobre os ombros dos seus executores e gerenciadores, mas quem perdeu naquele momento foi a sociedade suíça.

Por este motivo, não surpreendem os questionamentos sobre o processo atual, que levou à escolha do Gripen sueco. De fato, é louvável que todo e qualquer questionamento seja feito, assim como é esperado que todos os gestores do programa de aquisição de caças dêem as informações necessárias e convincentes para que não sobrem dúvidas.

É provável até mesmo que um referendo popular seja feito em breve (possivelmente ainda neste ano), o que legitimaria ainda mais todo o processo – podendo mesmo ser decidido que não se compre caça algum. Cabe destacar que referendos foram realizados em outros assuntos relacionados à aviação de caça do país. Foi o caso quando 57% dos votantes decidiram pela compra dos caças Hornet e, mais recentemente, quando 68% da população decidiu pela continuidade dos treinamentos dos caças sobre os céus do país.

Se a atual escolha dos novos caças suíços será uma “vingança servida fria”, só a aprovação pelos trâmites políticos, e um eventual referendo, vão dizer. Mas a Suíça parece que aprendeu, com o passado, como lidar com esse assunto “quente”.

FOTOS: Schweizer Luftwaffe

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