Ricardo Mioto e Rafael Garcia

A empresa estatal binacional ACS (Alcântara-Cyclone Space), criada para unir Brasil e Ucrânia na busca por espaço no mercado internacional de lançamento de satélites, enfrenta barreiras para seus planos de longo prazo na área de Alcântara, no Maranhão.

Após ceder numa disputa por terras com comunidades quilombolas da região, a ACS deverá se instalar numa área da Aeronáutica dentro do CLA (Centro de Lançamento de Alcântara), pagando aluguel de R$ 113 mil. A área é suficiente para desenvolver a plataforma de lançamentos do Cyclone-4, diz a empresa, mas compromete o projeto de desenvolvimento que o governo pensava para a região: transformar a península em um parque tecnológico.

Rediscutindo

“Isso vai ter de ser discutido de novo com a comunidade local”, diz Roberto Amaral, diretor da contraparte brasileira da ACS. Segundo ele, a entrada do Brasil nesse ramo de negócio traz uma perspectiva nova para a região. Para que outras empresas de tecnologia se instalem, porém, será preciso convencer quilombolas a abrirem mão de algumas de suas áreas.

Por conta das dificuldades, a AEB (Agência Espacial Brasileira) já tinha cogitado sair do Maranhão. Contudo, o presidente da agência, Carlos Ganem, diz que ainda não desistiu. Ele pretende levar a Alcântara o mesmo modelo de desenvolvimento da Guiana Francesa, hoje lar da maior base equatorial de foguetes do mundo.
“Compare o que era Kourou antes de a ESA [Agência Espacial Europeia] tratar aquela população de 6.000 negros desdentados, sem salários e sem previdência social, com os hoje 21 mil negros e brancos, com dentes, com o maior salário mínimo da Europa, a melhor previdência social”, diz Ganem.

“Hoje os negros desdentados e completamente excluídos naquela região são na verdade os brasileiros que atravessam a fronteira para se beneficiar das vantagens incorporadas ao desenvolvimento local e social.”
Os quilombolas de Alcântara, contudo, mostram desconfiança em relação aos benefícios trazidos pelo Programa Espacial Brasileiro. Sinal disso é que, no dia 18 de dezembro, uma audiência pública do Ibama, de apresentação do relatório de impacto ambiental do projeto da ACS, abriu espaço para discursos de gente que critica os interesses da empresa.

Aconteceu quando o microfone foi aberto a perguntas. Em vez delas, surgiu o presidente da Câmara Municipal da cidade, Benedito Barbosa, exaltado, dizendo que os técnicos contratados pela ACS eram mentirosos. Foi aplaudido. Outros fizeram discursos parecidos.

Boa parte da resistência se deve à experiência traumática causada pela criação do CLA, na década de 1980. Na época, comunidades quilombolas inteiras foram transferidas para regiões afastadas.

Sem peixe

A Folha visitou as terras que os transferidos receberam da Aeronáutica e onde estão desde então. Peixes eram a sua base alimentar, mas os quilombolas foram retirados de perto do litoral. Agora, a pé, levam cinco horas para chegar aos lugares onde costumavam pescar.

Além disso, reclamam que os lotes recebidos são pequenos demais e pouco férteis. Nesses lugares, é possível ver várias casas abandonadas.

Os moradores se dizem pouco convencidos sobre os empregos que a ACS prevê – 900 durante as obras e 300 quando os foguetes estiverem sendo lançados do centro.

Mesmo com a ACS desistindo de construir as suas instalações onde hoje estão os quilombolas, existirão impactos.

Um deles se relaciona com as normas de segurança para lançar foguetes. Toda vez que isso vai ser feito, é necessário fechar a costa para evitar o risco de que destroços caiam na cabeça de alguém -nada de gente pescando, portanto.

“Dizem que é muito seguro, mas todo mundo sabe que isso já explodiu”, diz um dos quilombolas, referindo-se à explosão que acabou matando 21 técnicos no centro em 2003.

Resistência se inspira no MST e recebe apoio de ministérios

Para convencer os quilombolas a não deixarem suas terras, há dez anos foi criado o Mabe (Movimento dos Atingidos pela Base Espacial). Desde a fundação, os coordenadores fazem seminários nas comunidades quilombolas -Alcântara tem por volta de 150. A Folha acompanhou um dos eventos.

A inspiração, diz Sérvulo Borges, o Borjão, líder do Mabe, são as oficinas que o MST faz com os seus membros. “O MST é um grande parceiro, inclusive em formação política.”

Falando para 50 pessoas, outro participante questionou se é justo que “esses empresários [a ACS] ganhem dinheiro às nossas custas”. “Estamos em guerra”, disse Borjão aos quilombolas que assistiam.

Dois lados


O material do evento vem com os logotipos da Secretaria Especial dos Direitos Humanos e do governo federal. Questionado sobre como o movimento consegue se bancar, Borjão afirma que conta com a ajuda de Brasília.
Ele divide o governo em duas metades: a que apoia os projetos do Mabe (ministérios da Cultura, do Meio Ambiente, do Desenvolvimento Agrário) e a que não é amigável (ministérios da Defesa e da Ciência e Tecnologia).

Os mais novos são incentivados pelo Mabe a estudar. Borjão lamenta o fato de os jovens das comunidades quilombolas receberem ensino básico tão ruim. Por isso, afirma ele, não conseguiu preencher as vagas que tinha conseguido via MST para enviar estudantes para Cuba e Venezuela. Um deles, entretanto, foi mandado para Goiás, por meio da Via Campesina, para cursar direito.

No seminário, um dos que falam ao microfone diz aos jovens: “Se você quer ter algo, se quer ter emprego, precisa estudar”. Em seguida, outro discorda: “Quem disse que devemos procurar patrão? Quem disse que devemos trabalhar para eles [se referindo ao Centro de Lançamentos de Alcântara]?”

Carlos Ganem, presidente da AEB, tem procurado reverter a resistência quilombola com um discurso de inclusão social. “Desenvolvendo o setor aeroespacial você não promove só o desenvolvimento técnico e tecnológico”, diz. “Você proporciona um extraordinário mecanismo de alavancagem social, cultural, educacional, turística e comercial também, para chegar ao espacial.”

Líder já foi da Aeronáutica e quis ser padre

Sérvulo Borges, 47, o Borjão, é o líder do Mabe (Movimento dos Atingidos pela Base de Alcântara). Mas ele já esteve do outro lado do conflito.

Ele entrou para a Aeronáutica, assim como outras dezenas de garotos de Alcântara. “Levaram a gente para São Paulo. A gente voltava saudável, bonito. Aí ajudávamos a convencer o pessoal a sair das suas terras, ajudávamos na mudança. Éramos alienados, vítimas.”

Ficou até o começo da década de 1990, quando voltou para Alcântara. Aproximou-se da Igreja Católica. “Em 13 de maio [dia da libertação dos escravos] de 1993 , eu estava lá na igreja, doidinho para ser padre, alienadinho. Estava escutando uma rádio católica de São Luís. Eles estavam falando sobre o que significava aquele dia. As coisas começaram a fazer sentido para mim.”

Começou a frequentar seminários, a ler sobre quilombos, a se aproximar de antropólogos, de ONGs.
Ele critica os “brancos do Sul” -produtores rurais gaúchos- que “estão invadindo tudo, inclusive o Maranhão, deixando esses CTGs [Centros de Tradições Gaúchas] por aí”.

Borjão se dedica hoje somente ao Mabe. Diz que vive com dificuldade. Segundo ele, quem segura as pontas quando “não tem nenhum projeto do governo” é a mulher, que é professora de ensino infantil.

Quer agora se mudar para o Rio de Janeiro. Lá, pretende colaborar com um movimento nacional de quilombolas.

FONTE: Folha de São Paulo

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