As obras atuais do programa espacial no MA configuram invasão de terras quilombolas?
A Folha de São Paulo perguntou para duas pessoas, com visões distintas, o que elas acham da questão das terras quilombolas próximas à Alcântara. Leia os argumentos abaixo de cada lado.
SIM
IMAGINADA pelos militares nos anos 1980 como um “vazio demográfico”, Alcântara torna-se um problema -jurídico e fundamentalmente social- a partir da Constituição de 1988, que garantiu aos chamados remanescentes de quilombos o direito a titulação de seus territórios.
Em 2000, a Fundação Palmares reconheceu o território étnico de Alcântara, integrado por mais de 150 comunidades, onde residem e trabalham cerca de 17 mil pessoas. Vivem da pesca, da agricultura, do extrativismo. Sua economia se baseia no uso comum dos recursos, de acordo com o que a legislação nacional e a internacional reconhecem como populações tradicionais. São grupos protegidos por lei pelo fato de sua dinâmica interna representar um patrimônio social e cultural contemplado na Constituição Federal (artigos 215 e 216 e artigo 68 do ADCT – Ato das Disposições Constitucionais Transitórias) e na Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), da qual o Brasil é signatário.
Nos anos 1980, 312 dessas famílias foram retiradas compulsoriamente dos seus lugares, à beira do oceano, e instaladas nas agrovilas, onde não podem se reproduzir material e socialmente, pois tais áreas são distantes do mar e constituídas de solos arenosos. Ainda hoje não têm títulos das terras e das casas a elas entregues pela Aeronáutica e os jovens casais são proibidos de aí edificar novas residências. Tal situação conforma um processo de limpeza étnica, pois os jovens são obrigados a migrar para as periferias de Alcântara e de São Luís, proibidos de viver nos territórios de ancestrais.
O Brasil responde hoje na Câmara Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos) pelo fato de ter tratado esses brasileiros como cidadãos de segunda categoria, além de ter provocado uma grave desestruturação ambiental e social no município como um todo. Há também uma ação interposta na OIT no mesmo sentido. Atualmente, as famílias que permaneceram no litoral do município são atingidas pela ação de empresas ligadas à Alcântara Cyclone Space, binacional brasileiro-ucraniana. Em 2008, passados oito anos da instauração de uma ação civil pública no âmbito da qual se cobra do Estado Brasileiro a titulação do território quilombola de Alcântara, empresas contratadas pela ACS invadiram os povoados do litoral onde pretendiam implantar três sítios de lançamento.
Ali realizaram inúmeras perfurações, suprimiram vegetação sem licença do Ibama e destruíram caminhos, roçados e margem de rios. Ameaçadas em suas condições de existência, as famílias reagiram instalando barreiras e obrigando a empresa a se retirar. No final de 2008 foi homologado judicialmente um acordo acerca da titulação do território. As empresas não realizariam obras no território quilombola, recuando para dentro dos 8.700 hectares já detidos pelos militares. As partes se comprometiam a não recorrer da decisão. Agora, o Gabinete de Segurança Institucional solicita a instauração de uma câmara de conciliação perante a AGU (Advocacia Geral da União), desrespeitando aquela decisão judicial.
Toda e qualquer reação dessas comunidades à entrada das empresas em seus povoados hoje deve ser entendida à luz de acontecimentos que atravessam três décadas -e não pode ser qualificada simplesmente de intransigência. São quase 30 anos de violência, de descumprimento da legislação, de desrespeito a acordos lavrados em cartório ou estabelecidos judicialmente. Nesses lugares, a luz elétrica e o telefone chegaram há apenas dois anos. Nas agrovilas, famílias foram separadas, sua soberania alimentar foi duramente atingida, a realização de festas e rituais foi seriamente comprometida e foi suprimido o contato com os cemitérios antigos.
Após tanta violência, o governo deve estabelecer diálogo pautado no respeito a esses grupos. Assim sugeriram os quilombolas, propondo reunião que seria realizada no último dia 18, em São Luís, na Federação dos Trabalhadores na Agricultura, mas a ACS, segundo informações de Samuel Moraes, presidente do STTR (Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais) de Alcântara, recuou.
MARISTELA DE PAULA ANDRADE , 60, historiadora, com doutorado em antropologia social pela FFLCH-USP, foi assessora especial da Presidência do Incra (1985-1986). É professora da UFMA e autora de “Terra de Índio – Identidade Étnica e Conflito em Terras de Uso Comum”.
NÃO
FAZ ALGUM tempo, vi ilustre cientista brasileiro descrever, com orgulho profissional, como conseguira atrasar, em dois anos, o início das obras das hidrelétricas do rio Madeira. A explicação era técnica: as obras da barragem inverteriam o curso habitual dos bagres e isso poderia prejudicar a reprodução daqueles peixes peruano-amazônicos. Hoje, assisto, estarrecido, a situação semelhante em Alcântara, no Maranhão.
É indiscutível a importância de um programa espacial para o Brasil, que tem 8,5 milhões de quilômetros quadrados de área, litoral de cerca de 10 mil quilômetros, fronteiras com nove países independentes e a Guiana Francesa e população de cerca de 200 milhões de habitantes. Não me estou referindo a justas questões de segurança nacional, “stricto sensu”, mas, para além delas, à segurança de nosso espaço aéreo e de nossa aviação comercial, ao monitoramento ambiental de nosso território e às telecomunicações em geral. Desde os anos 60 do século passado, o Brasil vem, com a inconstância típica com a qual nossos governos cuidam das questões estratégicas, tentando montar seu programa espacial, que se constitui de três elementos insubstituíveis: base de lançamento, foguete lançador e satélite.
Naqueles anos, tratava-se de iniciativa pioneira, pois, depois da ex-União Soviética e dos Estados Unidos, éramos dos primeiros a tentar explorar o espaço, antevendo a importância que, nas décadas seguintes e neste século, alcançariam as telecomunicações. Hoje, fomos ultrapassados pela Coreia, pela Índia, por Israel, pela China e, mais recentemente, pelo Irã. Nos anos 1980, estávamos à frente de todos esses países. Quem responderá perante as gerações futuras por esse crime? Aos obstáculos, a alternativa parecia ser a ACS (Alcântara Cyclone Space), empresa binacional resultante de tratado firmado entre o Brasil e a Ucrânia. Um salutar encontro de interesses. A Ucrânia possui uma das mais testadas linhas de foguete, o Cyclone, mas não possui bases de lançamento. Nós não possuímos tecnologia nem de fabricação de foguetes nem de plataforma de lançamento.
Entraríamos com nosso sítio. Seria na península de Alcântara, onde já se encontra o CLA (Centro de Lançamento de Alcântara), a 2,2 graus do Equador, o que nos possibilita, em face dos concorrentes, maior capacidade de lançar para órbitas equatoriais. Pois é exatamente essa vantagem que nos querem tomar. A área anteriormente destinada à ACS foi perdida pela ação de “representantes” de comunidades quilombolas que bloquearam, em fevereiro de 2008, o acesso de nossos técnicos ao sítio, ao qual viemos a renunciar nos autos de ação corrente na Justiça Federal maranhense. Graças à cooperação do Ministério da Defesa, novo sítio foi concedido, desta feita dentro dos limites do CLA, exatamente por ser esta uma área não questionada.
Mas, para nela operarmos, o Ibama nos exige a realização de pesquisas em área quilombola, trabalho que, desde novembro passado, nos é impedido por “líderes” locais. Não temos nenhuma sorte de conflito com quilombolas. Queremos, apenas, que nos deixem trabalhar dentro do CLA. Estamos parados há mais de um ano. Não é possível recuperar o tempo perdido. Quem pagará a conta de nosso atraso? Somente em fluxo de caixa, o Brasil deixa de ganhar US$ 300 milhões por ano de atraso.
A quem interessa o atraso? Decerto não interessa à ACS, ao Brasil e às comunidades quilombolas de Alcântara, que vivem do extrativismo e da agricultura de subsistência, mantidas criminosamente longe da civilização. Talvez interesse às chamadas “lideranças” das comunidades, aos advogados do “museu antropológico” e aos agentes financiadores internacionais. Finalmente, todo o esforço de instalação de um programa espacial completo no Brasil foi destruído pela decisão de burocratas do Incra. A destinação de 781 km2 da península para o “Território da Comunidade Quilombola de Alcântara” reduziu o espaço para atividades espaciais brasileiras ao atual CLA, impossibilitado de crescer para cumprir novas missões.
Isso torna inútil uma localização privilegiada e condena o Brasil a conviver com sérias vulnerabilidades estratégicas e de defesa nacional. De quem é a responsabilidade?
ROBERTO AMARAL , 68, advogado e cientista político, é diretor-geral brasileiro da Alcântara Cyclone Space. Foi ministro da Ciência e Tecnologia (2003-2004).